Há porcaria na carne

Para os cineastas americanos os hambúrgueres e a indústria de "fast food" parecem ter-se convertido na face mais visível da "corporate América" (e pensando nos milagrosos poderes multiplicadores do "franchising", não custa imaginar que de facto o seja). Depois de "Super Size Me", o filme em que Morgan Spurlock comunicou ao mundo a má nova de que uma dieta à base de McDonald"s faz mal à saúde, Richard Linklater chama a si novo libelo acusatório: a indústria de fast food vive obcecada pela maximização do lucro, não se poupando a esforços para embaratecer os custos de produção, sacrificando, entre outras coisas, a qualidade e as condições higiénicas da carne que utiliza.

O filme de Linklater (uma ficção) é melhor do que o documentário de Spurlock, mas levanta, para começar, uma questão semelhante. A de saber exactamente a quem se dirigem manifestos destes, uma vez que aplicam um estilo denunciatório a matérias que se diria serem óbvias (o "fast food" faz mal e a indústria é gananciosa - alguém de bom senso imagina sequer que possa ser doutra maneira?). Claro que, e arrancamos de vez "Geração Fast Food" à comparação com o filme de Spurlock, a ambição de Linklater transcende essa denúncia específica. Quer desenhar um quadro mais geral e o modo como os seus vários fios se interrelacionam, incluindo as pequenas (ou grandes) corrupções e a exploração de mão de obra ilegal. Estruturalmente, estamos mais próximos de algo como o "Traffic" de Soderbergh do que de Spurlock ou de Michael Moore. Ou do mais obscuro "Silver City" de John Sayles, que é melhor cineasta do que Linklater, Soderbergh, Spurlock e Moore todos juntos.

A mensagem é a que é: basicamente, a América vendeu a alma ao Diabo corporativo. Pode-se concordar com isto ou discordar, mas parece pacífico que nem o teor da mensagem é inovador nem a sua formulação especialmente sofisticada. Aliás, Linklater acaba a misturar alhos com bugalhos - já no fim, planos "neutros" do matadouro (sem aquela dimensão alucinatória do "Sang des Bêtes" de Franju) que mostram o percurso normal da vaca ao bife parecem indicar que em causa já está todo e qualquer consumo de carne.

O filme aguenta-se melhor durante a primeira parte, de longe a mais interessante. Através de Greg Kinnear, executivo de uma grande cadeia de hambúrgueres enviado ao Colorado para inspeccionar o matadouro de onde vem a carne e perceber por que razão os testes feitos aos hambúrgueres da empresa acusam uma tal quantidade de resíduos fecais ("there"s shit in the meat"), acompanhamos uma viagem de esclarecimento. Kinnear descobre como funciona o sistema e perde a inocência; ligeiramente indignado, esboça vontade de agir, mas ouve da boca de Bruce Willis (em "cameo") a moral da história: de vez em quando, todos temos que "eat shit". Depois vai-se embora, na melhor e mais sintética cena do filme (uma recepcionista de hotel completamente maquinal). E o filme esvazia-se. Ficam os imigrantes mexicanos entregues ao seu previsível (e completíssimo) calvário, e umas quantas personagens avulsas, de onde se destaca um grupo de jovens politicamente conscientes (mas muito ingénuos e um tanto irritantes) e com vontade de fazer "qualquer coisa".

"Geração Fast Food", como dissemos, é interessante durante a primeira parte, enquanto há Kinnear, diálogos com alguma verve, e presenças ambíguas como as de Kris Kristofferson ou Willis. Depois, torna-se beato e ilustrativo, até um derradeiro golpe de rins permitir reencontrar a personagem de Kinnear para um final em humor derrotista que, se não redime o filme, atenua a impressão de desconchavo que Linklater deixara instalar-se.

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