Os maias

Mais percalço menos percalço Mel Gibson lá vai prosseguindo a sua via autorística. Libertou a Escócia em "Braveheart", deu-nos uma "Paixão de Cristo" em aramaico, e agora, em dialecto Yucatec, filma o fim da civilização Maia e... a chegada dos cristãos espanhóis. Bate tudo certo, "Apocalypto" podia ser (e de algum modo, é) uma sequela para "A Paixão de Cristo". Como batem certo a tendência sanguinolenta a resvalar para o "gore", o lado sacrificial e castigador ("Apocalypto" é uma espécie de "via crucis" sem cruz), e uma ideia de salvação indissociável de valores básicos, familiares e, mesmo em contexto Maia, cristãos (mais do que pela sua vida, é pela sua família nuclear que o herói corre).

Também bate certa a megalomania de Gibson, aqui talvez ainda mais evidente do que nos filmes precedentes. A diferença entre "Apocalypto" e um filme de acção corriqueiro está na maneira como Gibson o vai embebendo de uma solenidade que se pretende não apenas "grandiosa" mas, sobretudo, "significante" - matéria para leitura e decifração, "mensagem", lugar inclusive para uma ambiguidade que podia ser interessante se não fosse enunciada (e anunciada) com tão pouca subtileza. É um pouco irrelevante tentar perceber o que quis Gibson "dizer" (ele, que até falou, parece que a sério, no Iraque) com esta fábula sobre a dissolução civilizacional (?) quando o filme grita a plenos pulmões a sua vontade de ser (e de ser lido como), justamente, uma "fábula sobre a dissolução civilizacional".

A estrutura narrativa é bastante simples, são basicamente três longas sequências. Na primeira apresenta-se uma aldeia harmoniosa; na segunda a aldeia é saqueada e os homens (e algumas mulheres) levados para a cidade para serem protagonistas de um sacrifício ritual; na terceira o herói escapule-se "in extremis" e inicia o caminho em sentido contrário, perseguido pelos soldados que haviam perpetrado o rapto.

A primeira parte é bastante paternalista, e Gibson até filma a aldeia e os aldeões com tiques de "cinema directo" (uns quantos "inserts" irritantes, a emular um estilo de documentário), como se "Apocalypto" nos quisesse convencer da autenticidade da sua visão "etnográfica" - não é o ser falso que irrita, é a pretensão da autenticidade. Depois, começa a "acção" e bom, Gibson, continua correr atrás dessa presunção, mas agora pelo lado do esforço físico, pelo sofrimento imposto aos participantes naquela longa marcha para o sacrifício. Quer que vejamos esse esforço e esse sofrimento, mas é difícil vê-lo quando, de tanto o procurar sublinhar, encharca o filme de efeitos de montagem, de efeitos sonoros, de ralentis, anulando por completo a dimensão física - as personagens correm, magoam-se, cansam-se, mas é impossível acreditar nisso (os grandes cultores do burlesco sabiam que esta é a dimensão em que não se pode fazer batota, no que também é, digamos assim, uma lição dramática que Gibson não aprendeu). Mais do que pelo folclore pré-colombiano (completo com cerimoniais e premonições) era por aqui, pelo "paroxismo humanista", que "Apocalypto" podia ser interessante. No fim de contas, "folclore" e "humanismo" revelam-se feitos da mesma matéria: pechisbeque.

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