A máquina do tempo

Quando H. G. Wells inventou a sua "máquina do tempo", que permitia ao protagonista viajar ao passado e a tempos perdidos na memória cultural, estava a abrir uma complexa caixa de Pandora. É a partir da sua experiência, embora pudessémos invocar outras tentativas, como a irónica fábula de Mark Twain, "Um Americano na Corte do Rei Artur", que a literatura e o cinema constroem inúmeras variações sobre as hipóteses de andar para trás e para a frente na complicada manipulação do Tempo, como espaço do desejo e como categoria (i)mutável.

Sem grandes preocupações de exaustividade recordamos, apenas no cinema moderno americano, as curiosas incursões de Coppola, em "Peggy Sue Casou-se" (1986), de Robert Zemeckis, na trilogia de "Regresso ao Futuro" (1985-1990), para já não mencionar os mais recentes (e muito diversos) "O Dia da Marmota" ou "Pleasantville".

"Déjà Vu" encaixa neste paradigma, acentuando a capacidade para alterar o passado e jogando com a capacidade da tecnologia de ponta, para transformar o cariz imutável do Tempo. O argumento é artificioso e milimetricamente jogado como um "puzzle": o desastre de um "ferry-boat", carregado de passageiros, por via de um explosivo colocado num carro, é deslindado por um detective (impecável prestação de Denzel Washington, com o carisma que lhe é peculiar), a partir da reconstituição do percurso de vida de uma jovem da qual recebera um misterioso telefonema que o colocava no local de acção. Baseado num mecanismo de repetição e na capacidade para desafiar as regras físicas da organização temporal, Washington é transportado para os dias imediatamente anteriores à catástrofe e tenta modificar os dados da acção, procurando inclusive "salvar" o companheiro que morrera na catástrofe. De peripécia em peripécia e com uma perfeita concatenação de elementos, assistimos ao desenrolar de um emocionante "thriller", até ao final feliz, que confunde as expectativas mais óbvias e revela uma montagem segura e uma noção admirável da manipulação do espectador.

A realização de Tony Scott, conhecido pela sua histeria visual, aposta numa gestão coerente dos meios, com razoável sentido da narratividade criada pela viagem empreendida ao passado. O aparato policial e a intriga científica são manejados com uma notória sobriedade, não apenas explorando o espaço urbano (uma New Orleans icónica, em ressaca de Carnaval), mas também aproveitando, com solidez e bom gosto, os excessos visuais provocados pela máquina de vigilância - um "big brother" a posteriori, devassando a intimidade das casas e das vidas humanas -, sempre a salientar os valores de entretenimento, mesmo quando procura tornar credíveis os delírios da revisitação transformadora.

Entendamo-nos: "Déjà Vu" não inventa nada, nem aspira a grandes tiradas filosóficas. Se apenas lhe pedirmos o quer dar, ou seja um exercício bem carpinteirado de acção, apimentada com uma rábula de Jim Caviezel, num extremista de direita estereotipado, como convém, não sairemos defraudados. Poderemos até dizer que o filme é longo e, por vezes redundante, mas, pelo menos, sentimos que estamos perante um objecto industrial razoavelmente concebido e executado. Quanto ao previsível desenrolar da acção, lá está no título o "Déjà Vu", à laia de "desculpabilizador".

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