Uma história da violência

A guerra na antiga Jugoslávia já foi há tempo suficiente para que os seus "filhos" e "filhas", aqueles que nasceram durante o conflito, comecem a estar na idade de fazer perguntas. Que tempo foi aquele, em que circunstâncias vieram ao mundo, qual é (qual foi) a história dos pais. Não é outro o tema de "A Filha da Guerra", aliás concisamente explicitado pelo título encontrado pelo distribuidor português - em substituição do original "Grbavica", palavra dificilmente pronunciável em bocas lusas, que dá nome à zona de Sarajevo onde habitam as protagonistas do filme de Jasmila Zbanic, uma mãe e a sua filha adolescente.

"A Filha da Guerra" vem recomendada pelo Festival de Berlim, que lhe concedeu o Urso de Ouro na última edição. Um manifesto exagero, mas enfim, sobre a tendência dos grandes festivais europeus (vide a Palma atribuída a Ken Loach em Cannes) para premiarem filmes a fazer fronteira com o anódino, provavelmente por razões de "tema" ou, como se dizia antes, de "fundo", não cabe aqui elaborar. O filme de Zbanic é correcto, bem comportado, espécie de "argumento filmado" sem rasgos e inteiramente subjugado à sua ideia temática. É curto (cerca de noventa minutos) mas mesmo assim parece que se vai esticando apenas até ter o tempo necessário para que a sua revelação final (a verdade sobre o pai da rapariga) não apareça cedo demais. É o momento dramaticamente mais forte do filme, e num certo sentido toda a razão da sua existência - dizer que a guerra na Bósnia foi suja, que aconteceram coisas feias, e que chega um momento em que é preciso enfrentar isso para seguir em frente. A justeza da mensagem, assim como a sua pertinência, são inquestionáveis, para mais se devolvermos o filme ao seu contexto geográfico específico.

É essa justeza, que se transmite ao tom do filme, discreto e uniforme, que o aguenta. Um roteiro, um pouco triste, um pouco esquemático, pela Sarajevo contemporânea - e, sem surpresa, os momentos em que o filme mais arrebita (ou que o interesse do espectador mais se espicaça) são aqueles, poucos, em que Zbanic deixa ver alguma coisa da cidade, seja das ruas vivas seja das zonas mortas e arruinadas pela guerra. A "paisagem humana" surge através dos ambientes em que evolui a personagem da mãe (Mirjana Karanovic, que conhecemos de alguns filmes de Kusturica) e das figuras secundárias que encontra - "nightclubs" manhosos com empregadas ucranianas, homens de negócios duvidosos, "gangsters" que enriqueceram oportunisticamente durante a guerra, ex-combatentes semi (ou totalmente) traumatizados, viúvas de guerra. Por seu lado, a filha tem uma espécie de namorado que anda de pistola - sendo também ele um "filho da guerra", é uma provável sugestão da transmissão dos genes de uma "cultura de violência".

"A Filha da Guerra", muito brando, muito maleável, raramente entusiasma, e a própria revelação final se torna bastante previsível a partir de certa altura. Nunca bate o pé a essa modorra mas, dentro do seu esquematismo, nunca se trai, mantendo-se na nota certa. E por um esquematismo inteligente (como é o seu) ser sempre melhor do que um esquematismo acéfalo deixamo-lo no limiar do "filme a ver".

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