Uma colheita vulgar

Associamos sobretudo o nome de Ridley Scott a filmes de acção, desde a encenação cuidada de "O Duelo" (1977) até à recuperação inesperada do "peplum", em " O Gladiador" (2000), ou a sequelas de prestígio, como "Hannibal" (2001), passando pelo mítico "Blade Runner - Perigo Iminente" (1982), modelo de um novo modo de encarar a Ficção Científica, com requintes de cenário e uma "atribulada" movimentação de câmara, e pelo vertiginoso "Chuva Negra" que adapta ao seu particular olhar "publicitário", uma negra revisita ao universo do filme de gangsters.

Por isso, não deixa de surpreender, desde logo, encontrar a sua assinatura aposta a uma comédia romântica, uma história de vinhos e de memórias da infância, "apimentada" com romance que baste e servida com abundância de "flash-backs", em cenários de uma Provença estereotipada e glamorosa, alternando com imagens de lutas na bolsa e de regressos a antigas ficções de "yuppies" convertidos aos prazeres da natureza benfazeja.

Comecemos pelo princípio: passa-nos pelo palato a sugestão de um bom vinho que uma criança partilha com o tio, extravagante vinhateiro inglês (Albert Finney, muito bem a "fazer de si próprio"), enquanto joga uma partida de xadrez, com batota à mistura, o que dá o tom para o salto no tempo, fazendo "raccord" com outras batotas a nível da alta finança. A morte do tio e a herança do "château" levam-nos a França, com panorâmicas dignas de um "spot" publicitário para um carrinho utilitário, com brincadeiras animadas de GPS, abundantes imagens da infância feliz e uma idealizada imagem do Sul da França (restaurantes aprazíveis, pequenos almoços saudosos, misteriosas caves ou passeios nas vinhas). Nada de muito prometedor, nem de muito original, sobretudo se tomarmos em conta que o filme se baseia num romance de aeroporto, de Peter Mayle, "especialista" em Provenças de pacotilha.

Scott procura dourar a pílula e até revela no interior dos diálogos o busílis da questão: para fazer uma comédia é preciso "timing". Dizer que "Um Ano Especial" não cumpre os objectivos mínimos seria uma injustiça, mas o realizador coloca a fasquia muito alto, quando invoca o "santo" de Tati (nome do cão da propriedade), em citações minimais. Não contente com isso, o mecanismo citacional passa por um famoso excerto de "Lawrence da Arábia", quando o crescido Max Skinner (um Russell Crowe muito pouco à vontade) cai na lama da piscina, durante o seu esforço para se desfazer a bom preço da casa e da quinta.

Comecemos a fechar o círculo: como comédia, "Um Ano Especial" (há reminiscências de "French Kiss", de Lawrence Kasdan, e de outras ficções "vinhateiras) é um pouco pesado, lento e previsível. O costumeiro gosto pelo decorativismo publicitário não ajuda. E, no entanto, por detrás do (completamente) "déjà vu", nota-se um esforço curioso para conseguir uma razoável "colheita": a sequência do jantar, em casa do "caseiro", a intromissão da personagem da prima americana, que lê "A Morte em Veneza", o interesse romântico da criada de restaurante, convenientemente "franciú", na medida certa, tudo contribui para uma agradável comediazinha que não insulta ninguém. Temos, porém, que fazer o favor de passar por cima da fotografia delambida dos "flash-backs", do tom de reclame de longa-metragem, do forçado sotaque britânico de Crowe e da pouca graça dos diálogos. Tudo somado, fica na boca o gosto a "vinho barato", longe (longíssimo) do "vintage" de, por exemplo, "Sideways" de Alexander Payne.

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