Hong Kong e EUA; o ping pong

"Entre Inimigos" é um "remake" de um filme de Hong Kong, "Infiltrados" ("Infernal Affairs", no título em língua inglesa), de Andrew Lau. O jogo de "ping pong" entre os asiáticos e os americanos já vai avançado, por entre vénias, reconhecimentos e agradecimentos - e na América tem sido Quentin Tarantino o principal praticante.

Mais clássico do que Tarantino (em termos de formação e referências), e também mais influente do que ele (a sua invenção, nos anos 70 de uma "estilização" da violência urbana, é algo que se reflecte em muito cinema asiático posterior), é curioso ver Scorsese a responder por sua vez ao serviço, fazendo um "remake" americano de um policial urbano de Hong Kong.

Valha a verdade que "Infiltrados" não era um filme "típico" - mais interiorizado e menos espalhafatoso do que outro cinema asiático nesta linha, com uma espécie de desejo "metafísico" que se exprimia através da redução das personagens a pouco mais do que silhuetas arquetípicas (e, sendo "psicológico", era-o mais a partir dos estatutos das personagens do que das suas biografias). Nesse aspecto era um filme cuja dureza e sobriedade estabeleciam uma ponte muito directa para a tradição do policial americano clássico. É curioso, portanto, que Scorsese dinamite esse lado discreto e sussurrado de "Infiltrados", multiplicando-lhe a exuberância espectacular e instilando-lhe um fôlego de saga, pessoal (com personagens muito mais "cheias", e no caso de Jack Nicholson, que suga tudo à sua volta, excessivas) mas também colectiva. Será esta questão "colectiva", em termos de princípio, a fundamental marca distintiva de "Entre Inimigos": William Monahan (o argumentista) e Martin Scorsese pegam na história original e fazem-na reflectir-se no ambiente da imigração irlandesa (em Boston) e nos seus pequenos submundos do crime organizado. Como caldeirão, é estimulante: uma história de Hong Kong, nas mãos de um ítalo-americano, sobre os irlandeses do Massachusetts.

Voltamos ao "ping pong": se Scorsese "serviu" há trinta e tal anos, não parece assim tão interessado em responder, agora, ao "serviço". Faz o seu jogo - faz "Scorsese", na banda sonora (a remeter para "Tudo Bons Rapazes"), nas auto-citações, e faz, se calhar, um bocadinho a mais (ou demasiado explicitamente). E quando "refere", remete para as suas referências, não para Hong Kong - por exemplo, e é quase uma brincadeira, citando os primeiros três ou quatro planos da cena do chuveiro em "Psico". A Irlanda, por sua vez, é a Irlanda que Scorsese melhor conhece: a Irlanda de cinema, vinda através de um "clip" do "Denunciante" de John Ford, ou duma menção ao "Bom Pastor" de Leo McCarey. As suas vénias são essas, e é a esse "serviço" que, como sempre, lhe interessa responder.

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