Em fuga poética

"Em Paris" é o segundo filme de Christophe Honoré estreado em Portugal, depois de "Minha Mãe". Que era uma adaptação duma novela de Bataille e dava um filme pesadote e refém dum simbolismo alusivo que não parecia ir longe. Honoré, que tem virtudes camaleónicas, arranca aqui um filme completamente diferente - mais directo, mais tenso, mais sinuoso, mais físico. O pouco que gostámos de "Minha Mãe" volve-se no muito que gostamos de "Em Paris", que é mesmo um dos melhores filmes que veremos este ano.

Começa em "trompe d'oeuil" seguido de "flash back". "Trompe d"oeuil": plano de um quarto e de uma cama, onde dormem dois rapazes e uma rapariga. Seja o que for que pensemos, não é aquilo que estamos a pensar - um dos rapazes (Louis Garrel) levanta-se da cama, vai até à varanda (por onde entra Paris numa golfada) e dirige-se à câmara e ao espectador. Há um "flash back" para fazer entrar e é essa a função da sua alocução, que ele reconhece (boa piada) "palavrosa" e "pedante". Dois lugares-comuns associados ao cinema francês (a "libertinagem" e a "verborreia") encarados com ironia logo à partida - no que também soa a uma filiação.

Por comodidade descritiva mais do que por rigor, digamos que "Em Paris" é um melodrama familiar. Há dois irmãos: Louis Garrel, o mais novo e o mais estouvado, que vive em casa do pai; e Romain Duris, mais velho, que entra em depressão violenta a seguir ao colapso da relação que tinha com a namorada, Anna, e recolhe a casa do pai, em estado de catatonia agressiva.

Há o pai (Guy Marchand), indivíduo paciente e misterioso que zela por que a normalidade seja mantida em mínimos aceitáveis, acreditando estoicamente que existe nessa manutenção uma cura para desgostos e um seguro para disfunções. Há umas quantas mulheres: a mãe furtiva (Marie-France Pisier), há muito saída da casa familiar, e várias raparigas, a que deixou Duris e aquelas com que Garrel se cruza ao longo do dia. E há ainda uma outra, uma irmã, de que as personagens nos falarão mais tarde. Acompanhamos toda esta gente ao longo de um dia, 23 de Dezembro, praticamente véspera de Natal.

E bom, perguntarão, que tem isto tudo de tão especial? Muito, mas fundamentalmente a justeza: as situações, as flutuações, as palavras, tudo soa na nota certa sem exagero nem defeito. Podemos resumir "Em Paris", então, a um caso de dramaturgia brilhante? Não, não podemos - porque essa justeza tem a ver com a "mise-en-scène" de Honoré, com as suas transições entre cenas, com os seus tempos, com a maneira como o filme parece estar sempre a mudar mantendo ao mesmo tempo uma coesão e uniformidade inabaláveis.

"Realismo", então? Sim e não, e "sim" mesmo assim mais por descrição do que por receita, tal como "não" porque tudo parece estar sempre prestes a explodir - por exemplo aquele telefonema, perto do final, de Duris para a ex-namorada, telefonema cantado que desafia a "suspension of disbelief" de um modo que só é possível porque Honoré acredita em Jacques Demy. Como se o cinema, de facto, fosse sempre "fantástico", algo que se introduz na realidade e no quotidiano, e que se cola às coisas e às vidas. É este registo livre, em "fuga" poética e fantasiosa, que traz a "Em Paris" o que ele tem de especial. E que não é diferente do que acontece em certas cenas de diálogo em que as vozes dos actores se transformam em vozes "off", como se falassem de boca fechada - ou não falassem de todo, e fosse o cinema, os artifícios do cinema, a cobrirem a "realidade" e a suprirem as suas falhas. E que também não é, evidentemente, muito diferente daqueles "intermezzos" através dos quais Honoré faz vénia mais declarada à "nouvelle vague" - aqueles momentos em que as personagens entram em "filmes mudos", pícaros, "filmes dentro do filme" como abundam nalguns dos primeiros Godards, Vardas, etc.

É uma "filiação" e uma vénia, claro; mas também é a afirmação do cinema como "possibilidade", como elemento agregador do quotidiano - aquilo que aparece no lugar da fuga e do sonho. Era o crítico Serge Daney quem explicava que tinha sido cinéfilo por "falta de imaginação": como não sonhava nem imaginava, só tinha os filmes, os sonhos e a imaginação de outros. Dito isto, é tudo? Não. É preciso acrescentar que a história entre os dois irmãos é belíssima. Que o périplo parisiense de Garrel, que demora um dia a fazer um trajecto de meia hora até ao centro comercial, é feito em nome do irmão. As interrupções, sobretudo: encontra três raparigas (a última num reflexo no vidro, misto de "Alphaville" e "Woman in the Window") e vai para a cama com elas; depois diz ao irmão, trancado no quarto a gozar a depressão, que o fez "por ele", como se de cada vez se tratasse de lhe oferecer um "sopro de vida". Que a cena mais impressionante (Duris excitado a ouvir um velho single de Kim Wilde) é um paradigma da "exaltação do deprimido", quando as coisas mais inesperadas se transformam numa experiência religiosa, e o deprimido Duris se oferecesse a ela com toda a convicção, como se sentir a carne viva de cada uma das suas feridas fosse o mais próximo que pode estar da felicidade a que tem direito. E bom, é mais ou menos isto.

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