As ficções da rainha mártir

Para entender a verdadeira extensão deste novo retrato de Maria Antonieta, proposto por Sofia Coppola, centrado numa adolescente inadaptada, mártir de um mundo que a ultrapassa, convém lançar um olhar sobre as representações que o cinema, atraído pelo cariz romântico (no sentido restrito do termo) da personagem, cristalizou em ficções históricas para o grande público.

Desde logo, avultam dois filmes, responsáveis por uma imagem dominante: "Maria Antonieta" (1938), do tarefeiro hollywoodiano W. S. Dyke, serve de veículo para a inefável Norma Shearer, estrela protegida pela sua relação marital com o produtor Irving Thalberg, e aparece no apogeu do estilo decorativista da MGM, instrumentalizando a História ao serviço de uma tórrida história de amor com o conde de Fersen, confiado ao ídolo das matinés, Tyrone Power; "Maria Antonieta" (1955) do francês Jean Delannoy, um dos representantes cimeiros do "cinema de papa", segue a mesma linha de "qualidade", embora procure reenquadrar, no contexto francês, uma pompa de trajes e perucas, falsamente adequados ao estrelato local dos fascinantes olhos azuis de Michelle Morgan, coadjuvada pelo britânico Richard Todd, em Fersen, dando, por igual, preponderância ao romance adúltero com o aristocrata sueco.

Em ambos os casos, se confere papel secundário ao marido "enganado" e pueril, entregando, no filme americano, a personagem de Luís XVI a um actor de composição, o inesquecível Robert Morley. Em ambos, também, tudo se concentra no brilho dos actores e na atenção aos valores de produção, sem análise das contradições ideológicas ou das ritualizações excessivas, que explicariam o drama da heroína, perdida num complexo labirinto de interesses. Claro que podemos entrever outros retratos da austríaca, como "secundária" ou como descentrada presença, em filmes de menor impacte: desde a rainha perseguida de Eléonore Hirt, em "La Nuit de Varennes" de Ettore Scola, até à irrisória encarnação de Ursula Andress, em "Liberte, Égalité, Choucroute" (1985), passando pela fútil leitura de "The Affair of the Necklace" (2001), com Joely Richardson, ou pela inscrição da figura real em obras de conjunto, como a prestação de Lisa Delamare, em "La Marseillaise" (1938) de Jean Renoir, ou a de Lana Marconi nas sagas históricas de Sacha Guitry, seu marido da altura, "Si Versailles Nous Était Conté" (1954) e "Si Paris Nous Était Conté" (1956). Temos, até, a inesperada composição de Ute Lemper em "L"Autrichienne" (1990) ou a fugaz representação de Nina Foch, no clássico e "coreografado" filme de capa-e-espada, "Scaramouche" (1952) de George Sidney.

Nenhuma destas tentativas de revisitar a rainha, sacrificada à transformação do mundo, atinge a complexa dimensão humana da "virgem suicida" de Sofia Coppola, nem a grandeza do mito reinscrito na modernidade.

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