Óptimas descobertas

Uma proposta de distribuição independente, que reúne dois filmes de formato pouco usual em exibições comerciais (em Portugal): uma curta e uma média-metragem.

A curta é "Rapace", de João Nicolau (n. 1975), que ganhou o principal prémio do Festival de Vila do Conde, tendo-se também feito notar nalguns festivais estrangeiros (de razoável importância, como o de Cannes). Questões curriculares à parte, é um filme notável e uma entrada altamente promissora. Espécie de crónica de um impasse pós-adolescente em registo que à falta de melhor termo definiremos como "burlesco", mantém sempre as portas abertas para que entrem outras dimensões, e para que "Rapace" se deixe marcar por um "aqui e agora" (geracional, político, social) que acrescenta bastante à sua força. Curioso é que o filme apresente essa marca numa mistura entre uma falsa vergonha e uma genuína timidez: há uma cena dentro dum carro (momento "Pierrot le Fou") em que o protagonista manifesta reservas quanto à pertinência da peça de "rap sociológico" que acabou de compor, e é como se as personagens estivessem a falar do filme, como que a pedir desculpa por "Rapace" não ter conseguido ser um "filme sobre nada". Marcado por um suave cepticismo expresso com exuberância (magnífico o raccord entre um punho esquerdo estendido e um travelling pelos "logos" dos bancos de Telheiras), é um filme duma inquietude indefinível, pontuado por alusões animalísticas ameaçadoras (os rapaces figurados do primeiro plano, os literais do fim, e uma cobra lá pelo meio) e uma tendência para a fuga (seja sono seja sonho).

"As Duas Vidas da Serpente", de Hélier Cisterne (n. 1981), também tem que se lhe diga. Há reflexos tão curiosos como obscuros entre ele e "Rapace", mas é outro território. Ficção que se desprende da realidade sem a abandonar, é um filho tardio de coisas como "A Sombra do Caçador" (Laughton), portanto primo em segundo grau de coisas portuguesas como "O Sangue" (P.Costa) ou "Glória" (Manuela Viegas). O começo é extraordinário: segue-se um motard estrada fora até ao encontro com uma carcaça fumegante de automóvel acidentado. Que é isto, Weegee? "Crash"? Ninguém explica, mas a ameaça fica. Paira sobre a cena (magnificamente filmada) dos barcos e dos miúdos que se dedicam a concursos de mergulho, acentua-se no encontro com a troupe de "cascadeurs" - que dá, sem favor, um dos melhores planos que vimos este ano: um rosto de mulher a sorrir, com carros que chocam e saltam uns sobre os outros lá ao fundo. Sobre o filme de Cisterne paira sempre esta sugestão de uma ameaça, um "cheiro a morte" de origem nunca esclarecida. Que se calhar é transportado pelo miúdo protagonista, colado no corpo, como um super-herói malévolo e inexpugnável capaz de mudar de vida como as cobras mudam de pele - ou melhor do que elas, visto que é tudo uma questão de adormecer e voltar a acordar. Óptima(s) descoberta(s), belo e ameaçador "double bill".

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