A caravana

Pelas bandas daquilo a que chamamos o "cinema independente americano" parece que não há, actualmente, outros assuntos para além destes: a frustração, o fracasso (ou, quase igual, a incapacidade de reconhecer o que é o "sucesso" para além de uma ideia, ou de uma ideologia), e a noção de que, sendo preciso viver com isso, importa saber como é que se vai viver.

Se a América é o farol do mundo, e o cinema o seu barómetro, convém que nos vamos preparando porque esta nova espécie de "grande depressão" há-de extravasar, se não extravasou já. "Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos" é uma primeira longa-metragem de dois realizadores, Jonathan Dayton e Valerie Faris, que já não são nenhumas crianças. Têm perto de cinquenta anos e um longo currículo na área dos telediscos, com obra realizada para grupos tão significativos como REM, Smashing Pumpkins e Red Hot Chili Peppers. Mas o filme não faz lembrar, em ponto nenhum, um teledisco - desprovido de efeitos ou de "tiques de linguagem", é razoavelmente seco, como se para Faris e Dayton (como para alguns outros realizadores de "clips" recentemente convertidos ao cinema) não se reduzisse tudo ao "audiovisual" e escolher o cinema fosse escolher uma relativa austeridade e um novo conjunto de códigos. Há um grupo de personagens, há uma história (um argumento, que parece notável, de Michael Arndt) e é preciso pôr isto a mexer, gerindo tempos e conjuntos, ambientes e curvas, narrativas e emocionais. Fora um "grand finale" (e melhor momento do filme) em que estes dados de base, totalmente realistas, se transfiguram em comboio-fantasma todbrowninguiano, é só isto que Faris e Dayton fazem, e fazem-no bem.

Uma família, portanto. Um especialista universitário em Proust (Steve Carell), o maior da América segundo ele próprio diz, em recuperação de um trauma amoroso que o levou a cortar os pulsos; a irmã dele, Toni Collette, mãe de família, que o acolhe por uns tempos, a conselho do psiquiatra; o marido dela, Greg Kinnear, candidato a homem de negócios e obcecado com o "sucesso" numa explosiva mistura de pragmatismo e misticismo; os filhos deles, um adolescente nitszcheano agarrado ao Zaratustra que fez voto de mudez eterna, e uma miúda de sete anos que sonha ser eleita "pequena Miss Sunshine" num concurso na Califórnia; e finalmente o avô heroinómano (Alan Arkin, em majestosa decadência), que a vida tornou cínico e amoral, "o grilo falante ao contrário" daquela família.

Metem-se numa velhíssima furgonete Volkswagen e põem-se em marcha para a Califórnia, para o tal concurso de "misses" da miúda mais pequena. "Filme de grupo", "road-movie". Ou... "western"? Bom, já vimos cenários menos propícios a isso do que o Novo México (arredores de Albuquerque), que é de onde eles partem, e a Califórnia. A carrinha Volkswagen é como aquelas caravanas de tantos "westerns", onde uma família atravessa território agreste contra tudo e contra todos. Ou enfim, como o seu reverso: fazer deste "conjunto" de pessoas tão distantes umas das outras um "grupo", a que os próprios possam chamar uma "família", eis o que parece o projecto do filme de Faris e Dayton. Peripécias, comoções, catarses (e, sempre, diálogos excelentes), e no fim o "freak show" do concurso das pequenas misses, notável construção de um grotesco de meter medo recorrendo apenas à escala de planos (ou, dizendo de outro modo, à maneira como se enquadra uma criança).

Docemente subversivo, encerra-se sem epifanias nem metafísica: apenas um gentil manguito, e toca de regresso a Albuquerque. Precisamos mais disto do que de revelações.

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