O mal em acção

Foi notícia num jornal ou numa revista a história de uma mulher que conseguiu escapar a uma rede de escravatura sexual e apareceu a deambular pelas ruas de Madrid sem se lembrar de nada, nem do nome; tudo em branco, à excepção de um número que acabou por descobrir ser o do telefone da família.

"Não sei quando nem onde li isto, acho que já estava a escrever o argumento. Sei que me impressionou imenso a ideia de uma mulher a andar hoje, em Madrid, sem se lembrar de nada sobre si mesma." Teresa Villaverde, 40 anos. À quinta longa-metragem o inferno não ronda por perto nem ameaça sugar-nos, rebenta-nos no corpo, mais concretamente rebenta sobre o corpo de Sonia, uma mulher que parte da Rússia em busca de um El Dorado a ocidente.

Uma certeza: "A capacidade de fazer mal, a humanidade não a perdeu. A história deste filme podia ter acontecido a qualquer pessoa do mundo." No princípio estamos em São Petersburgo. Há dois anos, quando a equipa de rodagem de "Transe" aterrou na cidade, houve quem dissesse que se a II Guerra Mundial estivesse a acontecer ali, naquele momento, os alemães provavelmente ganhavam. A meio de um Inverno mais curto e ameno que o costume, Ana Moreira, chegada para interpretar Sonia, não precisou de ouvir isto para ficar em branco.

"Eu nunca tinha visto neve. Quando começava a nevar muito ficava desorientada, as ruas começavam a parecer-me todas iguais, não percebia as distâncias, não distinguia a esquerda da direita." Uma cidade monumental, com o Hermitage ao fundo e a sombra de "Raskolnikov ainda a desaparecer pelos becos". Aqui tempos diferentes habitam o mesmo espaço: "Não é a Europa nem o Oriente, está no meio. É uma cidade que parece que não existe; parece que foi posta ali como um grande "décor". As próprias pessoas no início faziam-me medo. Com isso começei a perceber a vontade que a Sonia tinha de sair dali, para que aquele céu todo não a esmagasse, não a sufocasse."

Ana Moreira, 25 anos. Oito anos depois de uma estreia impressionante com "Os Mutantes", o escrutínio da câmara sobre o seu corpo, o seu rosto e o seu olhar seria quase diário ao longo dos três meses seguintes. Ana entregou-se a Sonia entregou-se a Ana numa transformação "incrível" , como diria o actor americano Willem Dafoe à actriz depois de ver o filme em Cannes. Ana entregou-se a Sonia, mercadoria a ser passada de mão em mão da Rússia até Portugal através da Alemanha e de uma Itália ficcionada entre vários cenários (um palácio em Sintra como bordel, o hotel Pestana Palace como residência privada).

A partir de dada altura, os espaços e as personagens sucedem-se como se fossem saindo da tômbola de uma alucinação lenta e densa. A partir de dada altura, a temperatura começa a mudar e há um lado de vertigem e assombração que se insurge, como se a realidade tivesse perdido pé, como se todos - e não só as personagens - tivéssemos passado por uma fissura no tempo e entrado em processo de estranhamento. Aqui, o corpo dói e perde-se terreno, como se à medida que progride o filme fosse apagando a sua própria história, como se o espectro de cada novo facto rasurasse o anterior.

No meio disto, Sonia.

No argumento, Villaverde descreve-a assim: "É seguramente uma das mulheres mais belas que já vimos com a cara assim em grande. A cara dela não precisa da luz do espaço [...] O olhar dela não pára [...]"

em perda.

Teresa Villaverde já confessou que começar "Transe" na Rússia teve um simbolismo necessário. Pressente-se que neste território em perda, onde um sistema colapsado há pouco fez ruir todo o tipo de certezas e referências, estava a metáfora perfeita para um filme da natureza daquele que queria filmar e o ambiente propício ao nascimento da personagem que procurava para lhe por ao centro.

Sonia não corresponde a ninguém real, mas a realizadora diz ter mantido com ela o mesmo principio ético que manteve com qualquer outra personagem até hoje: retratá-la de forma a poder olhá-la de frente se a encontrasse na rua. Um ano antes do inicio das rodagens, Ana Moreira começou a estudar intensivamente russo e italiano. A São Petersburgo chegou uma semana antes do início das rodagens.

Sentir as pessoas foi importante. Em Sonia elas estão em tudo, desde a postura física - "corpos erectos, que olham em frente" - à maneira de falar - vozes "bem colocadas, decididas". "A Sonia é uma personagem que se vira do avesso: podem vender o seu corpo, trocá-la por armas e por cavalos, mas ela não se perde por dentro. Os russos já passaram por muito. Têm uma força própria, como se pudessem resistir a tudo: ao frio, à guerra, à fome... Quis preservar nela o espírito e alma deste povo orgulhoso."

A partir daqui foi uma questão de empatia, confiança e entrega: "Com a Teresa falo sobretudo de coisas que aparentemente não têm nada a ver com os filmes [que estamos a fazer]: uma pintura, um livro, uma notícia... Basta isso às vezes, ou um olhar, para perceber o que é que ela quer que aconteça. É como se vivêssemos em planetas diferentes, mas nos encontrássemos num mesmo universo. Ela sabe isso e foi nisso que nós trabalhámos."

Quem conheça o cinema de Teresa Villaverde e as suas convulsões oníricas entenderá este tipo de cumplicidade como metodologia. É uma maneira de fazer cinema: "No cinema da Teresa não temos que estar agarrados a comportamentos do real. A realidade já existe, já temos que a encarar dia a dia e lidar com ela. Isto é cinema. As coisas ganham outras proporções."

É assim um dos primeiros planos de "Transe": uma massa de gelo impressionante que começa a quebrar e a afundar-se no negro. Mais à frente a imagem desfoca e haverá uma árvore imensa a tombar no meio do verde frio de uma floresta. Depois ainda, uma criança-soldado de espingarda em riste há-de olhar-nos de cima de um armário num quarto cinza-negro. Há o interior de comunas, com a chama dos fogões à solta e famílias inteiras no mesmo quarto, palacetes aparentemente desabitados há décadas, túneis e contentores, a bruma de bosques onde os corvos servem de prenúncio.

João Ribeiro, 39 anos, director de fotografia. Depois de um percurso quase exclusivamente dedicado ao documentário, uma ficção com o fôlego de "Transe". "A única referência de que eu e a Teresa falámos foi da pintura do Gerhard Richter, que está na imagem da árvore a tombar. Acho que me limitei a aceitar o carácter dos sítios." Como? "Aceitando a luz natural, não tentando mudar os espaços mas ter apenas um ponto de vista sobre eles." As diferenças cromáticas que se vão sentindo "são só uma tentativa de fotografar os sítios da melhor maneira possível." Houve uma excepção: "Havia quase uma espécie de luz para a Ana Moreira, uma luz muito suave, para dar a ideia de que ela não é quase deste mundo." Uma actriz como uma revelação: "A Ana foi a primeira pessoa que com quem senti aquela transformação de que se fala dos actores. De cada vez que eu olhava pela câmara havia qualquer coisa que estava a acontecer. Acho que tem a ver com a intimidade dela com a Teresa. As pessoas tornam-se telepáticas."

o mal.

É natural que apenas em filmes feitos de encontros como estes aconteçam raridades como a quase totalidade das cenas filmadas serem aproveitadas na montagem final - "A Teresa gostou do material, mas, mais importante que isso, o que ela escreveu continuou a fazer sentido na montagem. E a Teresa não monta cenas de que não gosta..." É natural também que, assim, a sedução se opere sobre um céptico. É ainda João Ribeiro quem o diz: "No documentário há uma espécie de transe, estamos sempre concentrados porque estamos mergulhados num universo. Na ficção estamos mergulhados num universo mas, se olharmos dez centímetros para o lado, estamos fora de campo. Para mim a ficção é uma espécie de código morse." Mas é também João Ribeiro quem diz: "Identifiquei-me logo com este filme."

Teresa Villaverde fala numa "sintonia rara": "Na maioria dos casos nem me lembro do que é que disse à equipa, se calhar nada de nada, porque, de alguma maneira, é óbvio. Quando se trata de temas tão vitais é muito fácil todos percebermos o que é que estamos ali a fazer. Num filme destes, de facto, quase não é preciso falar."

Villaverde fala também de uma "tensão útil": "Acho que isso se criou muito entre nós todos, uma tensão útil para um fim especifico, um objectivo." Tratava-se de agarrar e dar forma a uma ideia de Mal em acção. "Há uns tempos fui a um lançamento do Jorge Semprún, que viu e olhou de frente esse Mal. No fim da sessão, havia espaço para intervenções do público e eu perguntei-lhe se há vários tipos de Mal. Ele respondeu calmamente aquilo que eu pensei que ia responder: que só há um tipo de Mal. Também disse que acha que o que salva quem o olha é uma espécie de curiosidade de o ver em acção. A esperança da Sonia é conseguir o milagre de separar o corpo do pensamento. No filme há apenas uma vez em que ela diz que tem medo." É no início.

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