A cativa

Em "Transe" convém começar por saudar o regresso à boa forma do cinema de Teresa Villaverde, que nos últimos dois filmes ("Os Mutantes", de 1998, e "Água e Sal", de 2001), assinara os dois extremos da sua obra, ou seja, alternara o seu melhor filme e o seu pior filme. Filmes, aliás, bastante diversos, em tudo e por quase tudo, a começar na força e concisão do envolvimento formal: no caso de "Os Mutantes", poderosíssimo, capaz de definir um "estilo", um "método", ou porque não, uma "forma", pessoal e intransmissível, e de estabelecer de um modo que até então ("A Idade Maior", de 1991, e "Três Irmãos", de 1994) nunca fora tão definido os contornos e o desenho do cinema de Villaverde. De certa maneira foi essa imagem, esse desenho, que se suspendeu em "Água e Sal", obra mais indistinta, como que resultado de uma inflexão que até prova em contrário tomamos como (bastante) falhada.

E é, de facto, ao "desenho" de "Os Mutantes" que Teresa Villaverde regressa em "Transe" - quase, podemos dizer, como se não tivesse existido "Água e Sal" e se saltasse por cima dele. Há de novo, como ponto de partida, uma matéria "social"; neste caso, o trajecto de uma jovem mulher russa (Sonia, interpretada por Ana Moreira, para quem começam seriamente a faltar adjectivos), que deixa a desolação material da sua terra natal por uma hipótese de menos desolação em qualquer parte mais "dentro" da Europa para encontrar apenas um outro tipo de desolação (moral e sentimental) à medida que se enreda, cada vez mais, nos circuitos da imigração ilegal e da prostituição. Mas, tal como "Os Mutantes" deixava de ser um filme sobre os miúdos "olvidados" à guarda de instituições de solidariedade para passar a ser outra coisa e noutra ordem de descrição, também "Transe" resiste à mera redução ao seu "conteúdo" de carácter social (que no entanto está lá, com contundência, não deixando de configurar um "discurso", actualíssimo, sobre o que é esta "nova Europa" de trânsitos permanentes e contraditórios).

Para o dizer sem mais rodeios, o que "Transe" é, dentro desse enquadramento mas também arriscando pulverizá-lo, é o relato de uma longa noite, de uma viagem ao inferno. "O inferno é um cão a ladrar lá fora", é uma citação de Santa Teresa de Ávila que Villaverde escolheu para ilustrar a sinopse de "Transe". Há de facto cães que ladram em "Transe", não necessariamente "lá fora", e numa das vezes em que isso acontece (já perto do fim) trata-se mesmo de algo que pode funcionar como uma figuração do inferno. Mas para além do seu valor expressivo de epígrafe, a frase resume alguma coisa do princípio formal (mais do que isso: do princípio poético) do filme. É que "Transe", que mantém com os espaços (seja com os "lugares" seja, num sentido mais convencional, com a relação entre "interiores" e "exteriores") uma relação capital para a sua definição, é um filme que abole a imagem desse "lá fora", reduzido a sinais e a elipses.

Narrativamente, em primeiro lugar: "Transe" concentra-se na personagem de Sonia, e pouco ou nada nos diz (a nós, espectadores, ou a ela, personagem) sobre as manigâncias e transacções que a envolvem - "habitamo-la" tanto quanto podemos, sem mais explicações ou respostas do que ela.

Depois, porque o filme ele próprio se vai cerrando na mesma medida em que Sonia vai surgindo encerrada nos seus diversos cativeiros, de imigrante ilegal a prostituta de bordel, e finalmente a "cativa" propriamente dita (ressonâncias literárias serão pertinentes), escrava sexual para consumo familiar numa casa de nobres (?) italianos. Evidentemente, o filme leva este percurso de encerramento ao seu limite lógico - e aqui falamos menos do barracão que é o seu último "espaço" do que do fechamento da personagem dentro de si própria, fundindo, nos últimos vinte minutos, "real" e "onírico", e tornando impossível discernir com clareza o que é "descrição" e o que é "alucinação".

Pode-se dizer que se o filme conduz este processo de "interiorização" (no duplo sentido que vimos) numa progressão lógica imparável, também sofre com isso, e que existe uma certa quebra a partir do momento em que praticamente se encerra dentro de paredes. Teresa Villaverde é uma realizadora que alimenta muita da sua expressividade a partir de uma apropriação da natureza (em sentido lato: pode ser uma "natureza urbana"), e do modo como nela inscreve corpos e rostos (sobretudo rostos). Fechada em exteriores isso perde-se, nalgum grau, ficando a haver uma maior dependência das peripécias (chamemos-lhes assim) e dos diálogos. Não sendo, por isso, um filme perfeitamente resolvido, não impede (voltamos ao início) que seja um óptimo filme, de uma carnalidade fria e impressionante, conduzido por uma Ana Moreira em sofrimento enxuto vivido com cada músculo do corpo.

E (não falámos disso, a não ser de passagem na referência à "cativa") é um filme onde parecem existir uma série de pistas, "culturais" digamos assim (do cinema, de russos como Tarkovski ou Sokurov mas também de Buñuel, ou da literatura, Sade, Proust), que mantendo-se "mudas" e sem se gritarem a si próprias contribuem para adensar, e de certa maneira, interrogar, os sentidos e a experiência de "Transe".

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