As torres do inferno

Oliver Stone sempre dividiu grandemente as águas da crítica: os defensores, que os tem e aguerridos, salientam a enorme força visual das suas composições; os detractores, não menos numerosos, insistem na vacuidade dos efeitos, nas horrorosas câmaras lentas, contrastando com a histeria tocada de "delirium tremens" dos alucinados "travellings".

Para os primeiros, filmes como "Nascido a 4 de Julho" (1989), "The Doors" ou "JFK" (ambos de 1991) valem pela capacidade de captar a vertigem do momento histórico, sem tempo para respirar, nem entender a composição do plano. Para os segundos, os mesmos objectos exemplificam, na perfeição, a confusão estética e narrativa, instaurada pelo grotesco abuso dos efeitos visuais, próximos de um psicadelismo primário. Por isso, lhes contrapõem alguma (relativa) sobriedade de "Salvador" (1986) e a simplicidade de dramática de "Nixon" (1995), apesar da sobrecarga trazida pela interpretação mimética de Anthony Hopkins, para asseverar que o aparato de Stone não se torna indispensável para a sua crónica da América em mosaico e em abismo.

Central para este aspecto e, apesar de tudo, quase consensual é "Platoon" (1986), o espaço em que melhor se configura uma má consciência norte-americana, sobre a intervenção no Vietname, discutindo a heroicidade e a vulnerabilidade numa relação de curiosa equidistância. Quando volta ao trauma do Vietname, no já citado "Nascido a 4 de Julho" ou no insuportável "Quando o Céu e a Terra Trocaram de Lugar" (1993), Stone revela a sua incapacidade para superar o envolvimento emocional, afunda-se em patéticos discursos de mau melodrama e, sobretudo, acaba por se envolver num contraproducente olhar de autocomiseração.

Esta introdução tem por função tentar integrar numa obra complexa (e contraditória) o último filme do cineasta, "World Trade Center", de tal maneira ele parece contrariar alguns dos dados adquiridos sobre a sua personalidade e a sua estética. Desde logo, nos confrontamos com um aparato formal que mais parece privilegiar o tom de crónica, prescindindo de efeitos abusivos, com uma economia narrativa que encontra num início comedido o seu ponto de equilíbrio mais perfeito: faz-se uma leitura rigorosa do quotidiano de subúrbio, apresentando personagens e construindo um preciso pano de fundo para o desenvolvimento dramático, sem demagogia, nem escusados excursos.

Mesmo a opção, que pode parecer estranha, de se concentrar numa claustrofóbica rarefacção do espaço, filmando o "buraco negro" e os corpos aprisionados, resulta, na medida em que figura a dor e a perda com inacreditável força. Lembramo-nos, por vezes, da secura heróica dos filmes de guerra (e não só) de Samuel Fuller, até pela inesperada intromissão final da figura do "marine", marca assumidamente conservadora de um discurso vindicativo e religioso de uma América em luta pela sobrevivência de um "sonho" (pesadelo?) ameaçado.

Onde tudo começa a complicar-se é no modo como a montagem paralela vai remetendo para a instituição familiar, em dispersiva fuga para a frente: o confronto que pretende restringir o âmbito ficcional começa a soar a programático e formatado esquema para inscrever a heroicidade num rasteiro melodrama, que não pára de explorar uma quase chantagem emocional, envolvendo o espectador numa teia limitada de controladas (e "pavlovianas") reacções. Como no pior Stone, passamos da crónica para um registo patético e desconexo, mesmo quando entrevemos o desejo de complexificar.

Como quase todas as suas obras anteriores, "World Trade Center" debruça-se sobre as implicações do trauma, mas, ao contrário de algumas delas, não hesita em transformar a vitimização em valor justificativo de uma acção irracional: o catastrófico final, incluindo as legendas explicativas, embarca num discurso reaccionário e apologético, que contraria a vontade inicial de, partindo da parte, chegar ao todo, com rigor e sobriedade. Os sonhos com o Cristo, transportando a água "salvadora", não aponta apenas para o pior dos delírios desconchavados de Stone; confere ainda um cariz resgatador de perigosíssimas consequências. O mesmo acontece com o triunfal cortejo de recepção aos polícias resgatados das "trevas", transformando-se em metáfora de uma sociedade do espectáculo da dor, que rima com o pior da confusa "teoria da conspiração", em "JFK", por exemplo, ou com a violência gratuita de "Natural Born Killers" (1994).

Ou seja, no que parecia constituir uma estratégia diferente de conformar o desastre e o trauma de uma americanidade em perda, encontramos, em última análise, uma reconhecível impotência para entender o essencial do fenómeno que se quer analisar: "World Trade Center" perde-se numa acumulação de sinais contraditórios, mais próximo da histeria vingativa e cega da administração Bush do que se pretendia demonstrar. Há grandes momentos de cinema, em alguns dos apontamentos familiares, ou em certos planos do encarceramento, mas tudo aparece, infelizmente, ao serviço da costumeira confusão ideológica e estética, que associamos com Stone.

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