Do céu caiu...

É evidente que depois do dia 11 de Setembro de 2001 nunca mais ninguém olhou para um avião de passageiros da mesma maneira. Curioso destino, o daquele que estatisticamente é o meio de transporte mais seguro do mundo: tornar-se a expressão máxima do medo e da insegurança contemporâneas, potencialmente capaz de subverter a banalidade da sua presença na vida moderna transformando-se em túmulo e em arma de destruição em massa. Que os aviões metem medo vê-se e cheira-se, agora mais que nunca, em qualquer aeroporto.

É igualmente evidente que há muito metiam medo e que, neste sentido, o 11 de Setembro (e, sobretudo o seu "legado iconográfico", por assim dizer) se tratou essencialmente de um corolário. Deu-nos imagens que exprimem, de modo quase definitivo, tanto esse medo como uma forma extrema da sua concretização. Especificidade do seu contexto à parte, a única comparação possível é com as assustadoras (mas, vistas de hoje, singularmente feéricas) imagens do acidente com o zeppelin Hindenburg, que nos anos 30 deu a machadada final nos grandes dirigíveis como meio de transporte aéreo, ou com as do Concorde ("ícone" tão poderoso como o zeppelin) em Paris, em 2000.

Perante a brutalidade e impressionante sensação de "imanência" das imagens do 11/9 toda a invenção ficcionada empalidece. E no entanto, foi pela ficção que fomos alimentando este medo decorrente da "reversibilidade" dos aviões, cada vez mais eficazes e confortáveis mas, como um "lado negro", cada vez mais potencialmente ameaçadores. É curioso reflectir, a partir de alguns exemplos colhidos na história do cinema, sobre esta transformação e sobre o modo como se foi instalando nos espíritos. Reflectir, por exemplo, naquilo que foram os aviões nas primeiras décadas do cinema, sobretudo no americano. Símbolos do progresso e de um "homem novo", apogeu da idade da máquina e do seu domínio pelo homem - durante anos o avião foi um elemento heróico, se não mesmo épico, manifestação de liberdade e individualismo. Howard Hawks, cineasta aviador, baseou vários filmes na aviação; Howard Hughes (retratado por Scorsese em "O Aviador") imaginou "Hell"s Angels"; "Wings", de William Wellman, sobre aviadores na I Guerra, ganhou (em 1927) o Óscar de melhor filme. Os aviões e os aviadores (também no mundo real, como Lindbergh serve de exemplo) eram a máxima expressão de um mundo moderno, tecnológico, eléctrico; mas com ênfase na relação entre piloto e máquina, ou seja, e mesmo quando as coisas corriam mal, uma "coisa a dois" em que a falta de controlo do homem sobre a máquina (ou do homem sobre si próprio) nunca era total.

Convém referir que, apesar deste quadro (ainda) idílico, na Alemanha um cineasta introduziu num filme um pormenor que deixa bastante perturbada toda a gente que o descobre no nosso tempo pós-2001 - em "O Testamento do Dr. Mabuse" (1932), de Lang, há um "master criminal" (Lang pensou em Hitler, agora toda a gente pensa, com boas razões, em Bin Laden) que preconiza uma estratégia de terror "global", da qual faz parte a utilização de aviões de passageiros de modo não muito diferente ao que aconteceu em Nova Iorque; o velho Lang era tão pessimista que foi quem mais próximo esteve de adivinhar o 11/9, setenta anos antes.

A passagem do avião a instrumento de catástofe dá-se, naturalmente, com a sua própria evolução tecnológica, o aumento das dimensões e da capacidade de passageiros, e a banalização dos transportes aéreos comerciais. Passa-se da "idade do piloto" (o herói) à "idade do passageiro", que, transportado dentro dum contentor gigante, é reduzido à mais completa impotência - a perfeita vítima desprotegida. Especialmente conhecedor de tudo o que podia meter medo, Alfred Hitchcock concebeu porventura o primeiro dos mais espectaculares acidentes cinematográficos de avião: em 1940, em "Correspondente de Guerra", num plano único e "subjectivo" captado de dentro do cockpit, o espectador experimentava o impacto de um avião com o mar (através de um dispositivo tão simples como engenhoso: a visão para fora do cockpit era dada por uma "transparência", e por trás do ecran havia um tanque cheio de água, que era aberto no momento do impacto, assim inundado o décor).

Os filmes-catástrofe dos anos 60 e 70, sobretudo a série dos "Aeroportos" ("1975", "1977", 1979"...) acompanha esta evolução no tamanho dos aviões mas também esse efeito paradoxal de desprotecção, onde aos seres humanos, encerrados em algo que pode ser o seu túmulo, nada resta se não depositarem-se nas mãos sabem lá de quem. Um filme como o recente "Flightplan" (mauzinho, mas porventura o primeiro "filme de aviões" pós 11/9) acentua esta disposição: por cada vez maior e mais seguro que seja, um avião é sempre um sítio onde o passageiro está "perdido". Ainda assim, e noutro contexto, vale a pena fazer referência a um filme como "Fight Club", de David Fincher (1999), perturbante articulação de um "medo de voar" (uma bastante convincente encenação de um acidente de avião, do ponto de vista do passageiro) com imagens de destruição que fazem lembrar qualquer coisa: o "business district" de uma grande cidade a ser implodido. Não se pode dizer que Fincher não tenha andado lá perto.

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