Sonhos de uma manhã de nevoeiro

Não estamos no terreno do documentário clássico. Há uma "sonolência", talvez um sonambulismo, onde aquilo que foi vigília se dá a ver com as tonalidades difusas de um sonho - talvez seja isto aquilo a que normalmente chamamos a "memória".

Em "Diários da Bósnia" convém começar por levar o título à letra. Não parece que a escolha dessa palavra, "Diários", provenha de uma vontade de ornamentação poética: é antes a palavra certa para designar se não o objecto na sua totalidade pelo menos a atitude que lhe está subjacente e que em mais de um sentido o determina.

Não estamos no terreno do documentário clássico (e ainda menos no das suas declinações televisivas), nem é seguro que seja na tradição documental clássica que se encontrem os modelos comparativos para o filme de Sapinho.

Nalguns momentos podemos lembrarnos dos filmes do suíço Richard Dindo, pelo encontro entre um dispositivo de "travelogue" individualizado e as marcas da História que a partir dele se percorrem, mas sobretudo pelo fluxo/refluxo entre uma subjectividade assumida e uma realidade de que ela se embebe e sobre a qual se projecta. Mas é uma comparação quase irrelevante: o que pretendemos é reclamar para "Diários da Bósnia" uma identidade que o faz existir numa "bolsa" periférica daquilo que entendemos como o eixo central da tradição documentarista.

Como que reforçando a "independência" de "Diários da Bósnia" face a esse tipo de modelos, Sapinho indicou a escrita de W. G. Sebald como referência para a estrutura do seu filme. É possível que fiquemos lá mais próximos, com efeito. É preciso notar que "Diários da Bósnia" corresponde também a um gesto de arrefecimento - arrefecimento da "experiência" e arrefecimento da História. Sapinho construiu o seu filme a partir de imagens captadas durante duas viagens à Bósnia: em 1996, depois de levantado o cerco a Sarajevo, e em 1998.

Esteve vários anos a montar e é de supor - mas só ele o poderia confirmar - que esse trabalho tenha correspondido a uma supressão da urgência, a um decantamento da memória, a uma selecção e organização das "páginas" do "diário" a manter e a articular. Sendo um filme sobre a maneira como um indivíduo foi tocado por um lugar e por um contexto, "Diários da Bósnia" ultrapassa a dimensão meramente epidérmica desse toque. Em causa não está nenhuma espécie de "actualidade", mas antes uma persistência, ou, em sentido que neste caso pode ter tanto a ver com a fotografia como com a pintura, uma "impressão". Como se a montagem de "Diários da Bósnia" tivesse sido a resposta a uma pergunta: "o que é que ficou?". Isto serve para explicar o essencial de "Diários da Bósnia", bem como a posição de Sapinho dentro dele.

O realizador habita o filme desde o primeiro momento, no que é tanto uma assunção da subjectividade como o reforço - a lembrança - da existência de um olhar mediador: nenhuma "transparência", "Diários da Bósnia" é um daqueles filmes em que o realizador (ou o narrador) ocupa um lugar quase "xamânico", absorvendo, gerindo e devolvendo as energias (por assim dizer) que circulam entre estas imagens e o espectador que as observa.

Não terá sido por acaso que Sapinho escolheu assegurar ele próprio a narração "off", nem que o tenha feito sem procurar um estilo de narração imaculadamente "profissional" - é uma dicção e uma entoação onde existe "grão", onde parecem ter sido conservadas as hesitações e as imperfeições. E também explica, para retomar o essencial, a atmosfera (completamente?) onírica que se manifesta em "Diários da Bósnia". Como que uma "sonolência", talvez um sonambulismo, onde aquilo que foi vigília se dá a ver com as tonalidades difusas de um sonho - talvez seja isto, e talvez seja assim que se manifesta, aquilo a que normalmente chamamos a "memória". Sapinho convoca-nos para esse estado desde o princípio - o plano, dentro do avião que transporta soldados portugueses para a Bósnia, onde todos estão a acordar (o avião apresta-se a aterrar) depois de seis horas de viagem.

É um plano que propicia uma leitura ao contrário: os soldados estão a acordar, é certo, mas, na lógica do filme, não será esse o momento em que todos adormecemos e entramos numa espécie de sonho? Esse início, com a oposição entre o escuro que reina dentro do avião e a claridade que entra pelas janelas, também lança uma dicotomia essencial em "Diários da Bósnia", que de resto facilmente se pode defender ser algo que vem do "universo" de cineasta de Sapinho, já presente em "Corte de Cabelo" ou "Mulher Polícia": uma oposição entre claridade e negrume, espaço abertos e espaços fechados, entre um "horizonte" e a falta dele. Alguns dos momentos mais fortes vêm daí; por exemplo, a formidável sequência do túnel, quando um habitante de uma aldeia local guia a câmara pelo mesmo caminho seguido pelos aldeões quando, anos antes, conduziram uma expedição "preventiva" a outra aldeia das redondezas; ou ainda aqueles fortíssimos planos de Sarajevo, em manhã de nevoeiro cerrado que corta qualquer profundidade de campo.

Pode-se dizer, em última análise, que "Diários da Bósnia" é fundamentalmente o relato de uma estranheza e de uma distância. E que essa estranheza e essa distância tanto são as sentidas por um cineasta português em relação a um país estrangeiro e a um conflito "incompreensível" como as geradas pelo tempo que passou sobre as imagens que compõem o filme. Recomposição de uma "experiência", "Diários da Bósnia" é-o tanto quanto uma reflexão sobre a dissolução dela e das suas marcas.

Há coisas que não se podem empalhar nem conservar em formol (como vemos, perto do fim, na formidável sequência do museu de história natural). Resta uma espécie de son(h)o, que se vive - planos finais - na mesma ambígua ordem de realidade e de proximidade com que se contempla uma paisagem a partir das janelas de um avião.

Sugerir correcção
Comentar