O direito à epifania

"Eu, Tu e Todos os que Conhecemos" é a primeira longa-metragem de Miranda July, realizadora nascida em 1974. O filme chega com "pedigree" - ganhou a Câmara de Ouro em Cannes 2005 e conquistou prémios noutros festivais, com destaque para o de Sundance, esse que festival que para o "cinema independente americano" é cada vez mais uma mistura de Meca com o Cabo Canaveral. E "Eu, Tu e Todos os que Conhecemos" tem o perfil bem recortado.

"Típico filme Sundance", chamaram-lhe os críticos anglo-saxónicos, expressão que entendemos como dúbia (mesmo que na origem não o seja) e que manifesta algo que vai sendo cada vez mais verdadeiro: o "cinema independente americano", eventualmente por causa do tipo de filmes que Sundance privilegia, designa hoje uma espécie de "modelo" ou de "formato", de características mais ou menos previsíveis. Com sorte vir-se-á a tornar num género, como o western ou a comédia romântica.

O que em si mesmo nem é bom nem é mau, é o que é. E isso é o que apetece dizer de "Eu, Tu e Todos os que Conhecemos": nem verdadeiramente bom, nem verdadeiramente mau, limita-se a ser o que é. Os ingredientes também são o que são, ou seja, típicos: cidade de subúrbio ou subúrbio de cidade, narrativa saltitante entre várias personagens que estão todas um bocado perdidas sejam adultos ou crianças ou adolescentes, fios subterrâneos que as vão aproximando uma das outras, e filosoficamente uma espécie de mística da catarse que oferece a cada personagem o direito a ter pelo menos uma epifania ao longo do filme. Donas de casa desesperadas, rebeldes sem causa, semi-loucos e semi-sãos, afásicos e tagarelas, uns sem amor outros com amor a mais, desesperados e esperançosos - reconhece-se a galeria, com maiores ou menores variações vem de dúzias de outros filmes, e corresponde tintim por tintim ao modelo de humanidade "fragilizada" com que o "cinema independente americano" vem, de há anos, retratando a ordem do mundo. É claro que lá ao fundo espreita o avô Altman, de cujos filmes de grupo cheios de ecos e de coros objectos como "Eu, Tu e Todos os que Conhecemos" são netos, ou pelo menos sobrinhos-netos. Não tem mal nenhum. Mas claro que a acidez da visão do mundo de Altman não se partilha - e Miranda July ainda só tem 32 anos, além de que os esteréotipos do "cinema jovem" que também estão associados ao "independente americano" não prevêem essae tipo de acidez.

Em última análise, é o que mais limita "Eu, Tu e Todos os Que Conhecemos" (e para alguns será fonte de grande e compreensível irritação): um olhar pasmado sobre o mundo, uma experiência religiosa a cada esquina, a promessa de uma felicidade hipnótica. Mais uma vez, é o que é - e até é possível ficar-se quase comovido com esta profissão de fé no mundo, feita de uma convicta e empenhadíssima ingenuidade. Mas é preciso estar "in the mood", avisamos.

Sugerir correcção
Comentar