A travessia dos infernos

Depois do ataque às Torres Gémeas, o filme-catástrofe ganhou novo fôlego, após o período áureo da década 70: filmes como "Aeroporto" (George Seaton, 1970), "A Torre do Inferno" (Irwin Allen, John Guillermin, 1974), "Terramoto" (Mark Robson, 1976), ou "Avalanche" (Corey Allen, 1978) actuavam sobre as incertezas de um mundo em desagregação, trazendo para o imaginário fílmico as raízes de desconforto agravado com a divisão interna, devida ao conflito do Vietname, uma espécie de princípio de fim de Império. Ainda recentemente "The Day After Tomorrow" (2003), dirigido com severidade e ironia por um realizador alemão, Roland Emmerich, tocava nas feridas abertas pela vulnerabilidade a que fora sujeito o coração financeiro e simbólico do Império e sinalizava esta necessidade de repegar no "género" como forma de catarse, expurgando fantasmas de uma insegurança permanente.

Agora, outro alemão, Wolfgang Petersen, regressa a um dos títulos de glória do passado, "A Aventura do Poseidon" (1972), do tarefeiro Ronald Neame, para sob a forma de um "remake" aplicar novas tecnologias a uma fórmula já testada. Em relação ao original falta uma das imagens mais fortes, a de Shelley Winters, qual Johnny Weissmuller, a nadar e a mergulhar, para além de que o elenco não possui a força estelar do original, que tinha também uma intensa concentração temporal. Agora, Petersen, importado da Europa depois do sucesso universal de "Das Boot" (1981), explorando, de modo eficiente, o universo concentracionário, e de já longa tarimba na indústria, com "Na Linha de Fogo" (1993), "Air Force One" (1997) ou "Tróia" (2004), opta pela extrema pormenorização da viagem através do barco naufragado, a caminho da superfície, numa estratégia de controlado "suspense", passo a passo. As personagens encontram-se apenas esboçadas, nenhuma delas tem carisma para aguentar o crescendo de tensão, mas o retrato de grupo resulta num interessante exercício de estudo da sobrevivência, a todo o custo. Mesmo a figura de Kurt Russell resvala nalguma indefinição, constituindo, porém, o seu sacrifício um dos pontos culminantes de um périplo que lembra o excelente "A Viagem Fantástica" (1966) de Richard Fleischer, numa outra dimensão, a da exploração do interior do corpo humano. Richard Dreyfuss, a outra estrela "reconhecível", não tem papel à sua altura, no seu arquitecto "gay", mas revela uma ironia necessária para equilibrar a fragilidade da maioria das personagens: uma mãe e um filho demasiado estereotipados, uma "latina" para dar a quota de politicamente correcto, um "vilão" sem vilania (Kevin Dillon), a esvaziar de sentidos, uma galeria que poderia ser o centro da ficção. Por muito discutível que seja a ideia do "remake", ambientado na passagem do ano, com a pirotecnia dos efeitos especiais a suprir outras lacunas dramáticas, com jovens estrelas a dar uma nota de telefilme, existe uma certa grandeza no tratamento do espaço e uma enorme coerência na prossecução das regras essenciais do género. Petersen consegue sobretudo o "timing" perfeito, sem pontos mortos, nem hesitações, quanto à definição das sucessivas metas a atingir. Claro que a longa sucessão de obstáculos, corredores e canalizações corre o risco de cansar, mas o objectivo está traçado desde o início: prender o espectador a uma narrativa simples de salvamento. Não se lhe peça muito mais.

Se compararmos com "Titanic" de James Cameron, e a comparação é inevitável, falta a "Poseidon" uma melhor definição do pré-catástrofe, e muito do simplismo narrativo vem, precisamente, dessa pressa de chegar ao desastre, de fazer rebentar comportas e explodir instalações eléctricas. Dito isto, a desejada componente claustrofóbica está lá e o desespero suspensivo do encarceramento funciona. Um filme como este tem um público-alvo muito preciso e não perde tempo para o atingir. Quem desejar um estudo aprofundado de comportamentos tem que procurar em um outro objecto.

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