Os os carros de "Carros"

Estamos habituados a que os filmes da Pixar, no que é um dos segredos do seu apelo "transversal", multipliquem as referências e os apartes, as piscadelas de olho e os apontamentos auto-conscientes. E que o façam a partir do próprio universo cinematográfico, jogando com o reconhecimento e com a "memória cinéfila" do espectador. "Carros", claro, também o faz, por entre referências indirectas e citações expressas, como numa sequência que evoca os célebres "tripodes" da "Guerra dos Mundos".

Mas o principal âmbito do arsenal paródico da Pixar é, desta vez, o mundo do automóvel e da competição automobilística. Nos carros, nos nomes, nas personagens e nos actores que lhes dão voz existem curiosos jogos de espelhos; alguns apontam para uma "intersecção" entre o mundo do cinema e o mundo dos automóveis, outros relacionam-se com a cultura, história e mitologia automobilísticas. Quase todos os carros figurados em "Carros" se baseiam em automóveis reais, importando-lhes a forma mas também a aura e a "imagem" - dum velho Ford T (marco da indústria automóvel) a um Porsche-fêmea que antes era advogada em Los Angeles (assim assinalando o efeito de "glamour" que o carro europeu de luxo exerce sobre os americanos ricos ou novos-ricos), passando por um pequeno Fiat 500 obcecado com Ferraris e com a dimensão estética dos automóveis (assim evocando a sensualidade estilística associada ao "design" de automóveis italiano).

À parte James Dean, que morreu disso, quais são os actores americanos que mais associamos a corridas de automóveis? Steve McQueen, por exemplo. O protagonista de "Carros", um "stock-car" ambicioso, um "jovem lobo" desejoso de bater o pé aos "reis", leva o nome de Lightnin" McQueen. Vimos a saber que a homenagem directa é a um animador da Pixar falecido em 2002; mas o certo é que o nome McQueen também serve para Steve, protagonista de "Bullitt" e "As 24 Horas de Le Mans", coleccionador de automóveis e piloto nas horas vagas - à vontade entre os profissionais, conseguiu um segundo lugar nas 12 Horas de Sebring em 1970 (fazendo equipa com Peter Revson) e esteve para participar nas 24 Horas de Le Mans do mesmo ano partilhando um carro com Jackie Stewart (a intenção era "reconhecer" o terreno para o filme que viria a ser "Le Mans", projecto pessoal de McQueen). ´Coincidência ou não, é para Steve que este McQueen (apelido do tal animador da Pixar) remete, de maneira que parece fazer todo o sentido evocativo.

E que é exponenciado pela presença de outro célebre, e este ainda mais, actor-piloto: Paul Newman. O veterano actor dá a voz a uma personagem que se vem a saber ser um velho carro de corridas, várias vezes campeão nos anos 50 e depois retirado na sequência de um acidente. A ligação de Newman aos automóveis de competição é ainda mais forte do que a de McQueen. Descobriu-os nos anos 70, já tinha quase 50 anos. Foi piloto oficial da Nissan (com salário e tudo) em campeonatos americanos. Em 1979 chegou ao pódio de Le Mans, com um segundo lugar num Porsche partilhado com o alemão Rolf Stommelen. Teve a sua dose de acidentes espectaculares. Em 1995, aos 70 anos, ganhou a sua classe nas 24 Horas de Daytona, tornando-se o mais velho vencedor em provas oficiais. Em 2005, com 80 anos, continuava a correr, misturado com profissionais com idade para serem seus netos, num carro com o número "79+" (parece que o "80" já não estava disponível). Um fenómeno. A sua participação em "Cars" não é só um "casting" irrepreensivelmente justo, também soa a homenagem. E o papel em que a sua personagem se vê no fim, o de "team manager" do jovem lobo McQueen, também não é uma novidade para ele: há muitos anos que Newman tem uma equipa a correr nos campeonatos americanos de monolugares, sendo presença regular nos circuitos mesmo que quem se ocupe principalmente da gestão prática da equipa seja o seu sócio Carl Haas (a equipa chama-se Newman-Haas).

Depois, "Carros" tem "estrelas convidadas" bastante especiais. O universo competitivo em que o filme se desenrola é essencialmente americano. Uma espécie de reprodução do campeonato NASCAR, a mais tradicional competição automobilística americana (pondo a correr os chamados "stock cars") que é também um campeão de audiências televisivas - o americano médio terá dificuldade em saber quem é Fernando Alonso, mas saberá dizer o nome do trigésimo classificado da última corrida. A mais importante série do campeonato NASCAR é a "Winston Cup", transformada no filme da Pixar em "Piston Cup". Algumas das suas estrelas dão voz a bonecos de "Carros", como Darrell Waltrip na pele de um comentador, e sobretudo o veterano Richard Petty, verdadeira lenda americana, numa personagem ("O Rei") decalcada do seu próprio estatuto. Outros convidados: Jay Leno, que não é só um famoso apresentador de "talk shows" mas também um impenitente coleccionador de automóveis; e Mario Andretti, provavelmente o melhor e mais eclético piloto de automóveis americano de todos os tempos, que também foi campeão de fórmula 1 e a quem só faltou ganhar Le Mans (fez a última tentativa já com mais de 60 anos). Finalmente, e para que os europeus não ficassem sem levar nada, "Carros" chamou Michael Schumacher, heptacampeão mundial de fórmula 1.

Schumacher dá voz, naturalmente, a um Ferrari (corre para a marca desde 1996), e parece aproveitar este "cameo" para uma operação de charme: é que se se trata provavelmente do melhor piloto da história do automobilismo, os seus modos robóticos e o seu historial de "golpes baixos" entusiasmam pouca gente para além dos conterrâneos alemães e dos "tiffosi" ferraristas. O pequeno Fiat 500 cai para o lado quando lhe entra pela oficina um "Schumacher Ferrari" - é natural, é italiano e o sonho de qualquer carro italiano é ser um Ferrari.

"Carros" trata bem os carros e os pilotos, e isso é uma virtude tanto mais que esse universo raras vezes foi decentemente retratado pelo cinema. Entre o "realismo" (aspas, aspas) de "Days of Thunder" (o lamentável filme de Tony Scott com Tom Cruise, também ambientado no circuito da NASCAR) e a fantasia de "Carros", venha esta que é muito mais justa.

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