O pintor e o mundo

Raoul Ruiz continua a realizar filmes a um ritmo alucinante, com correspondente desequilíbrio na qualidade dos objectos e na coerência dos projectos propostos, entre o mistério do "thriller" e a exploração da psique humana, para além dos domínios do consciente. Desde o notável "L" Hypothèse du Tableau Volé" (1978) ao complexo "La Ville des Pirates" (1983), passando pelo que constitui, porventura, a sua obra maior, "Trois Couronnes du Matelot" (1982), filmado entre nós, o chileno percorreu, com invulgar humor, os caminhos de uma narratividade ínvia, algures entre glosas fantásticas do registo do "film noir" e uma distanciada reformulação do realismo mágico sul-americano.

Na sua mira estavam sobretudo a obsessiva subversão do mundo representativo, quase sob a forma de farsa, de um Cabrera Infante, cruzada com os labirínticos e intemporais caprichos de um Jorge Luís Borges. Sem cedências aparentes a uma ficção linear, Ruiz aposta, porém, num mecanismo de variação e de repetição, que corre, muitas vezes, o risco da auto-citação e arrisca, sempre, o desafio aos poderes de descodificação de um público "sábio", que os Modernismos criaram e cristalizaram. Resultado? Um universo reconhecível de autorismo comprovado, mas um prestígio conquistado em nichos intelectuais, cada vez mais reduzidos. Isto para além de evidenciar esgotamento de fórmulas e de soluções visuais e de provocar óbvio cansaço pela bulimia da criação constante e desordenada.

Independentemente do valor intrínseco do objecto em si, "Le Temps Retrouvé" (1999), encontro inevitável com o texto e com a personalidade de Marcel Proust, parecia trazer uma renovação nos chavões "psicanalizantes": o aumento de meios de produção, com elenco de superestrelas internacionais, não o afastava dos objectivos principais, ainda e sempre, de raiz literária, mas recentrava o seu olhar num decorativismo rigoroso, apropriado, em última análise, ao material abordado. "Klimt" encaixa neste paradigma cultural de reconstituição pormenorizada, sem abandonar a sua imagem de marca, desconjuntando a narrativa e fazendo dos "flash-backs" e dos parêntesis oníricos o motor da ficção. Ao pegar no pintor como objecto de um terrível bisturi de endeusamento e morte, Ruiz alarga o seu campo de visão ao mundo da decadência do Império Austro-Húngaro, faz da "Sezession", mais do que uma "escola" ou movimento, uma atitude de subversão das formas, perde a figura "biografada" num labirinto infinito de reflexos ao espelho de um mundo em perda, como já fizera, de forma mais contida, na figuração de Proust. Ao escolher Egon Schiele como contraponto e uma espécie de guia à exposição da morte de Klimt, o realizador opta por uma escatologia (uma das palavras-chave do seu cinema) mitigada da pulsão sexual, que acaba por se esgotar no "voyeurismo" (outro termo fulcral para falar de Ruiz) com que integra o cinema como arte e reprodução do real numa acção que se desdobra em infindável jogo de duplos. Os "travellings" que executa, quase sempre na perfeição, expõem esta viagem ao "tempo reencontrado", e logo perdido, como uma inutilidade museológica. A "mise-en-abyme" constitui fim em si, enclausura-se numa prodigiosa teia de referências cultas (e cultistas), como se do mundo nada importasse mais. E, no entanto, encontramos o reverso da medalha: "inútil" como biografia e como filme, "Klimt" possui uma estranha força, uma intocável pulsão de morte, como se o cinema especular (e múltiplo) de Ruiz ainda acreditasse no poder hipnótico dos primitivos, como Méliès, e apostasse numa modernidade contraditória, desfazendo as suas teias narrativas, ao sabor aleatório de uma instalação, consciente da sua transitória sobrevivência.

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