Internet e tecnologia digital alimentam mundo "gratuito" de Agostinho da Silva

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A tecnologia digital está a banalizar e a facilitar o acesso a numerosas micromáquinas Fernando Morgado

Comecemos por alinhar algumas realidades que parecem apontar, numa primeira abordagem, para esse tal futuro risonho sonhado pelo professor criado em Barca de Alva.

O mais famoso motor de busca da Internet, o Google, está a copiar milhões de livros para, como se escreveu no PÚBLICO há uns dias, "permitir o acesso a textos completos que caíram no domínio público e a extractos dos que têm direitos de autor"; os jornais gratuitos distribuídos na Europa já ultrapassam os 18 milhões de exemplares diários, situando-se acima dos 50 por cento de todos os jornais em circulação em Espanha e correspondendo a cerca de um terço em Portugal; com um computador ligado à Internet, é possível aceder gratuitamente a um universo praticamente infinito de informação e de obras musicais, cinematográficas ou literárias, mesmo que isso aconteça em condições muitas vezes contestadas pelas organizações defensoras dos direitos de autor; já é possível fazer ligações telefónicas para numerosos países a custos tendencialmente nulos, através do Voice Over Internet Protocol; a tecnologia digital está a banalizar e a facilitar o acesso a numerosas micromáquinas que permitem a criação, manipulação e fruição simples e barata de músicas, imagens e palavras, e de tudo isto misturado; com paciência e alguma sorte, é possível contratar viagens de avião até Londres, Berlim ou Nova Iorque por poucas dezenas de euros, através das novas companhias aéreas de baixo custo; e por aí fora.

Curiosamente, quase todas estas maravilhas têm um denominador comum: enquadram-se no universo muito vasto dos produtos e serviços ligados à cultura e ao lazer, mas não há o mais ténue sinal de que estas aparentes liberalidades possam vir a manifestar-se no mundo duro e difícil das necessidades básicas, isto é, da alimentação, do vestuário ou da habitação. Para estas, pelo menos para já, ou se é rico e as coisas estão resolvidas por si, ou, na falta de um prémio do Euromilhões, não há outra solução que não seja a de trabalhar para garantir um rendimento suficiente e regular; na ausência deste último e de tudo o resto, sobra o recurso a instituições como o Banco Alimentar contra a Fome que, todos os dias, em Portugal, distribui 70 toneladas de alimentos por mais de 200 mil pessoas que bateram no fundo da existência.

As prioridades invertidas

Perante estas duas tendências contraditórias, Paulo Borges, professor de Filosofia e presidente da Associação Agostinho da Silva, arrisca que "a sociedade parece responder melhor ao que é supérfluo, superficial e até inútil do que às necessidades mais básicas e elementares". E lembra que a prática criativa e cultural e a fruição completa e livre das produções dos criadores só são possíveis, para além das habituais minorias esclarecidas, "quando estiverem assegurados os bens mais essenciais". O que se está a verificar é uma inversão das prioridades alinhadas pelo professor-filósofo, que sustentava que um dia, "quando a economia acabar" e houver "de tudo para todos", se chegará ao tal reino da "vadiagem" e da criação sem limites. Pelos vistos, já é possível, para muita gente, "vadiar" e "poetar", mas de barriga vazia.

Mas, mesmo que um dia fiquem criadas as condições para esse mundo grátis, que Agostinho da Silva via como o resultado do desenvolvimento extraordinário das forças produtivas por obra e graça do sistema capitalista, Paulo Borges tem dúvidas: "Estamos numa encruzilhada. Temos tudo para caminhar para esse futuro, mas não é evidente que os grandes grupos, as grandes empresas, estejam interessados em que a humanidade se liberte".

Quem não tem dúvidas é Luís Silveira Rodrigues, jurista da Deco - Associação Portuguesa de Defesa do Consumidor, para quem todas as gratuitidades são aparentes, funcionando como máscaras de um sistema que, contrariando o sonho agostiniano, criou um mundo que está cada vez mais difícil e mais caro. O exemplo dos jornais gratuitos é classificado como "um dos casos em que a relação entre quem os lê e quem os paga é mais circular e menos óbvia". Mas, mesmo aí, "se as pessoas não pagam os jornais directamente, acabam por pagá-los indirectamente, porque a publicidade que os alimenta é paga pelos produtos, e os produtos", com o custo da publicidade incorporada no preço, "são as pessoas que os consomem", explica. De resto, Silveira Rodrigues tem "uma grande dificuldade" em ver "gratuitidade" neste tipo de iniciativas, sejam jornais, concertos à borla ou outro tipo de ofertas: "Ou vejo publicidade, ou subsídios, ou orçamentos alimentados pelos nossos impostos".

De muito difícil controlo, como admitem Silveira Rodrigues, o director-geral da Associação Fonográfica Portuguesa, Eduardo Simões, ou José Jorge Letria, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Autores, é a imensa comunidade de internautas que, só na Europa, integra 230 milhões de pessoas, com taxas de penetração por país que nalguns casos ronda ou ultrapassou mesmo os 70 por cento (74,9 por cento na Suécia) e que em Portugal já chegou aos 58 por cento, segundo os últimos dados da Internetworldstats. Parece ser na net que está a concretizar-se, em massa, o ideal de acesso fácil à informação e à cultura, faltando saber se o combate em curso contra "abusos" e "ilegalidades" terá algum sucesso, ou se será pelas linhas tortas da world wide web que se está a escrever direito em direcção ao sonho "gratuito" de Agostinho da Silva.

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