O Tempo que Resta

"O Tempo que Resta" tem um subtítulo, eventualmente mais luminoso (e menos enigmático): "a crónica de um presente ausente". Esse presente (no entanto) ausente, ou esse ausente (ainda assim) presente, não é outro que não o próprio Elia Suleiman. Suleiman habita esta revisão memorialista e tragicómica da história de Israel (ou dos árabes de Israel, ou dos árabes em Israel) entre 1948 e a época contemporânea (o muro de protecção, derradeira alusão) em estado de "auto-zombificação", testemunha atónita e silenciosa - quando aparece em carne e osso, para interpretar (no período que corresponde ao seu regresso do exílio) o papel do Suleiman adulto, a sua cara de palhaço triste (Buster Keaton, obviamente, é um modelo) torna fácil reparar que ele não diz uma única palavra. E depois, torna-se ainda mais fácil lembrar que mesmo os seus duplos da infância e da adolescência também não tinham aberto a boca para falar. Não deixa de ser uma questão do filme: falar, para dizer o quê?

Suleiman - como já tínhamos visto em "Intervenção Divina", e talvez mais claramente no seu segmento do filme de conjunto "A Cada um o Seu Cinema" - tem uma dúvida para com os clássicos do burlesco, Keaton, Chaplin, também um pouco de Tati no apreço pelo "gag" minimalista (e diríamos: também o Sr Hulot era, antes do mais, uma testemunha silenciosa). Mas na aliança entre o memorialismo de "O Tempo que Resta", construído sobre passagens do diário do pai de Suleiman e recordações do próprio cineasta, e a sua re-encenação da História como sucessão de rábulas, o ramo "familiar" de Suleiman liga-se mais directamente ao de cineastas como Federico Fellini ou Otar Iosseliani: "O Tempo que Resta" tem um bocadinho de "Amarcord" (as memórias de infância numa articulação "incompleta" com o contexto histórico) e um bocadinho de um filme como "Brigands" (o filme em que Iosseliani condensou séculos de tragédias georgianas num encadeado de peripécias burlescas). Há cenas que podiam vir de um filme (o coro de miúdos, árabes e judeus pressupõe-se, a entoarem hinos a Israel, mais a projecção de "Spartacus" com uma professora perfeitamente "castradora") e de outro (logo a abrir, o soldado que em 1948 não sabe se há de ir para leste ou oeste, norte ou sul, e mais tarde o gag do rapaz árabe e do tanque de guerra, cenas tão iosselianianas como as outras são fellinianas). Mais problemático é o fio alegórico que vem unir a diversidade desta narração fragmentada, a sensação de que em demasiados momentos Suleiman troca a espontaneidade do que está a acontecer pela carga (pesada) do que é suposto ver-se no lugar do que está a acontecer - pela "metáfora", em suma. Esta espécie de apelo à "interpretação" torna-se cansativa, simples ocultação do "sentido" mais do que sua problematização. Quando o Suleiman adulto aparece para transformar o filme numa história de fantasmas, a coisa compõe-se: a indecifrabilidade do seu olhar transmite-se às cenas, que de "metafóricas" passam a "exemplares" (como a dos miúdos árabes na discoteca, surdos às intimações dos soldados). Preferimos esta tristeza contemplativa, mas talvez chegue demasiado tarde, numa altura em que, ao filme, pouco tempo resta.

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