Enlatado

Literatura descartável nunca foi impedimento para bons filmes. A história do cinema clássico americano está cheia de filmes fabulosos realizados a partir de exemplares de "literatura de aeroporto", mesmo que ainda não se lhe chamasse assim. Quando foi para a América, Fritz Lang passou anos a ler esse tipo de romances - não só à procura de histórias para filmar como, dizia ele, por ser através dessa literatura popular que melhor podia compreender o seu novo público. Onde queremos chegar é aqui: à partida, nenhum preconceito contra uma adaptação cinematográfica do "Código Da Vinci", e não havia razão nenhuma para que tal adaptação não pudesse resultar num excelente filme.

Isto em abstracto, claro. Se a "expectativa mediática" em torno do filme, gerada pelo potencial escandaloso da história de Dan Brown e pelos 40 milhões (ou lá quantos foram) de exemplares vendidos era grande e compreensível, qualquer expectativa quanto à relevância intrínseca (e "cinematográfica") de "O Código Da Vinci" era, na melhor das hipóteses, quase nula. O nome de Ron Howard ("Uma Mente Brilhante", "Apollo 13", etc), o realizador mais aborrecido e ilustrativo do mundo, homem que nunca deve ter tido uma ideia na vida, não era de molde a gerar tal expectativa, antes pelo contrário. E não nos enganámos muito, se é que nos enganámos alguma coisa. "O Código Da Vinci" é uma ilustração neutra e académica do romance de Dan Brown, provavelmente resumida mas que mesmo assim tem que correr a mata-cavalos para conseguir fazer caber tudo em duas horas e meia. Não há respiração, nem sequer há personagens, apenas "veículos da narrativa", corpos e presenças que só interessam enquanto servem para desbobinar a intriga (e a maneira como o filme vai "despachando" as personagens que deixam de servir é significativa).

Corpos e presenças que nem sequer são muito interessantes - o esquema narrativo de "O Código Da Vinci" tem de facto algo a ver com aquelas "corridas" hitchcockianas tipo "Intriga Internacional", mas só em esquema, e com o liso e insípido Tom Hanks no lugar de Cary Grant. Como se isso não fosse suficientemente descoroçoante, o filme ainda tem que mentir sobre elas, em volte-faces súbitos e desonestos (como no caso da personagem de Ian McKellen, ainda assim o ser humano mais luminoso que se agita em "O Código Da Vinci", ou, em sentido contrário, no da personagem de Jean Reno).

Sem surpresa, o melhor até é a história, o tipo de fantasia histórico-religiosa que tem algum pedigree na Hollywood das últimas décadas. "O Código da Vinci" tinha ingredientes suficientes para ser uma espécie de "Salteadores da Arca Perdida" ambientado na época contemporânea, isto se Ron Howard tivesse um vigésimo do talento de Steven Spielberg. Não tem, já sabíamos. Limita-se a carregar no acelerador e a seguir por aí fora, sem parar um momento que seja, perfeitamente nas tintas para o gozo (dele e do espectador) de construir uma cena ou uma sequência, inventar um raccord ou uma ligação entre dois planos (e o pouco que inventa, uns quantos flashbacks redundantes, é duma piroseira atroz). Tal como as suas personagens, "O Código Da Vinci" é um filme "utilitário": a missão era meter a narrativa do livro numa lata e voltar a servir. Missão cumprida, os enlatados são a especialidade de Ron Howard.

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