A garota de roberto

Roberto Benigni não é uma criatura com que seja fácil lidar. Pode ser insuportável, sabe-o bem e abusa disso. O seu filme precedente, "Pinóquio", quase metia medo de tão grotesco - mas ficou-nos sempre a dúvida, ainda por esclarecer: Benigni fazia de propósito para que tudo fosse tão feio e tão monstruoso, "Pinóquio" era um filme infantil para gerar pesadelos às crianças e incomodar os adultos? Não seria uma surpresa se assim fosse. Lembrem-se de "O Monstro" (1994), por exemplo, daquelas longuíssimas sequências onde havia apenas Benigni a gesticular e a berrar. Também nos ficou sempre a dúvida: aquilo era Benigni a tentar ter piada sem conseguir (e portanto um exibicionismo masoquista) ou tratava-se simplesmente de martelar as cabeças dos espectadores (e portanto uma demonstração de sadismo?).

Convém não fazer apostas quando o assunto é Benigni, nem mesmo quanto à questão essencial - saber se ele sabe muito bem o que está a fazer, e toda a sua atitude releva duma espécie de perversidade, ou se pelo contrário se trata dum "insconsciente", dum instintivo mais ou menos "puro". Pouco importa, porque uma coisa ou outra tem o mesmo resultado prático. Faz de Benigni um cómico anarquista, porventura o único cómico verdadeiramente anarquista da actualidade. Nunca baixa a guarda (viu-se no "número" que guardou para a cerimónia dos Óscares). Atrai o caos e é atraido por ele.

Quando fez "A Vida é Bela" muito boa gente lhe caiu em cima: "Oh que inconsciente, então vai-me fazer uma comédia passada num campo de concentração?". Honestamente, nunca percebemos a razão para o choque: "A Vida é Bela" era um filme sobre a subversão, sobre um "paradigma" de ordem e repressão e sobre a anarquia como maneira de lhe sobreviver. Apenas isso. Mais ou menos aquilo que Chaplin sempre fez. E Benigni, obviamente, é um "chapliniano" - aliás, em nenhum país como a Itália o "chaplinianismo" fez tanta escola, basta recordar a Giulietta Masina de Fellini, o Ninetto Davolli de Pasolini, os vagabundos de Danièle Cipri e Franco Maresco, mesmo algum Nanni Moretti. Com maiores ou menores diferimentos, Benigni - o seu estar e a sua maneira de se instalar no mundo - vem desta tradição.

Se "A Vida é Bela" foi o que foi, com "O Tigre e a Neve" pode parecer que Benigni reincide. Agora, o Iraque; mas como é que ele pode ir fazer uma comédia no Iraque, quando aquilo está tudo a ferro e fogo? Justamente por isso: é o "caos" por excelência no mundo contemporâneo, pelo menos a partir do que se depreende das notícias. Benigni vai lá (enfim, tanto quanto possível: inventou um Iraque na Tunísia, onde rodou o filme) para se filmar no meio do caos, para justapor o seu caos pessoal ao caos do décor. Fora isso o Iraque não parece que lhe interesse muito. Nem tem muito a dizer, politicamente, sobre o assunto; apenas que a noite de Bagdad (mesmo com rastos de balas tracejantes) é tão bela que se diz que Alá volta e meia desce do céu para a vir admirar da Terra. Como bom narcisista, está tão interessado em si próprio que o olhar sobre os outros se mantém superficial e equitativo: entre um velho sábio iraquiano e os soldados americanos não há nenhuma diferença de natureza. Estão lá, fazem parte do décor, servem de coadjuvantes, servem de parceiros de "gag" (como quando Benigni, carregado de medicamentos, é tomado por um bombista suicida). Tudo está próximo, mas ao mesmo tempo longínquo, misterioso. Uma vez mais, essa ambivalência é a receita para a sobrevivência - e o suicídio do amigo iraquiano (Jean Reno) da personagem de Benigni, suicídio silencioso e misterioso, é como que um sinal: passam-se aqui coisas tristes e graves, mas eu (ele) estou de passagem, estou aqui mas estou longe. "It's a sad and beautiful world", era a máxima que Benigni repetia em "Down By Law", a sua primeira incursão no universo jarmuschiano. E é a máxima que serve de explicação "poética" para quase todo o cinema de Benigni.

Também foi no filme de Jarmusch que Benigni conheceu Nicoletta Braschi. Encontrava-a algures no "bayou" da Louisiana e ficava por lá, com ela. Nicoletta (que na vida real é a mulher de Benigni) nunca mais largou o cinema de Benigni, que também é quase sempre só a história dele e dela, ou a história dele atrás dela. É por ela que Benigni se vê no Iraque. Envolvida numa acção humanitária qualquer, é ferida e fica às portas da morte. Até aí, o filme fora um bailado de sedução. A partir daí, é uma comédia da devoção - Nicoletta em coma, Benigni às voltas à procura de medicamentos e a "falar com ela" (como no filme de Almodóvar). A história do filme, basicamente, é só esta, uma história grave "amortecida" pelo dispositivo cómico montado em seu redor. Isto é "a garota de Roberto", é curioso como todas os cómicos, mais tarde ou mais cedo, têm tendência para fazer o seu "The Kid"/ "O Garoto de Charlot". É um registo que Benigni inventou para ele (é de facto o mais parecido com "A Vida é Bela") e que de alguma maneira é só dele, é original e não tem par imediatamente identificável. Nem sempre funciona mas quando funciona, quando todas as nuances parecem carburar na perfeição, o resultado é compensador.

"O Tigre e a Neve" é um desses casos. Perto do fim, há uma sequência com neve falsa (uma "nuvem" de pólens sobre Roma) e um tigre real - e nesta fronteira entre o real e o artifício, entre o literal e o metafórico, entre a gravidade e a irrisão, está o essencial do cinema de Benigni.

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