O museu do kitsch

"O Mundo" foi o primeiro filme de Jia Zhang-ke depois de lhe terem sido devolvidas, pelas autoridades chinesas, "as credenciais de realizador". A sua obra anterior, por exemplo "Plataforma" (de 2000), fora criada na "clandestinidade", e "O Mundo" é o seu primeiro filme oficialmente autorizado depois de três longas-metragens "underground" (as outras são "Pickpocket", de 1997, e "Unknown Pleasures", de 2002, mostrados o ano passado no IndieLisboa).

"Plataforma" era um filme bastante explícito no retrato (histórico) do desencanto de uma geração que atravessou os anos 70 e 80, e que viveu quer a "revolução cultural" quer a sua ressaca. Era também um olhar particularmente amargurado sobre o sentimento de "no future" (quase "punk", e bastante "rock") instalado na juventude chinesa (ou em sectores dela, pelo menos), sobretudo na que vive na província, longe das grandes cidades. Num certo sentido pode-se dizer que Jia Zhang-ke oferece agora, a essas personagens, "o mundo". Mas é um mundo que convém ser mantido entre aspas - porque afinal de contas não passa de um "ersatz", de uma mistura entre uma Disneylândia "cultural" e uma carreira de mini-golfe. "O Mundo" designado no título do filme refere-se a um parque temático nos arredores de Pequim cujas atracções são inúmeras reproduções em ponto pequeno de "maravilhas arquitectónicas" dos quatro cantos do mundo - a torre Eiffel, o Taj Mahal, a Ponte de Londres, por aí fora. E as pessoas que o povoam, os empregados, os seguranças, as bailarinas das noites de espectáculo, gente a quem é oferecida esta espécie de cosmopolitismo sem horizonte, são os protagonistas do filme.

Que não tem verdadeiramente uma história, ou uma única história. Antes bocados, apontamentos, encontros e desencontros, interacções - sempre com "o mundo" em fundo. Diríamos, é bem possível que com algum exagero, que estamos próximos de um "filme-instalação", tal é dominado pelo décor e pela ideia de o filmar como enquadramento para as movimentações (físicas e sentimentais) de uns quantos seres humanos. Ou seja, isto é alguma coisa de simultaneamente muito real e muito irreal, como se fosse uma viagem por um "museu do kitsch" em ponto gigante. O verdadeiro mundo está "ailleurs" (há arranha-céus ao fundo, típica paisagem suburbana, mas não podemos ter a certeza de que esse verdadeiro mundo esteja já aí), mas ao mesmo tempo todo o mundo está ali, naquele parque. Uma coisa bastante interessante no filme é a maneira como, aliás, o cenário se "naturaliza" e se procede a uma integração "pacífica" das personagens nele - não há uma "revolta", há um reconhecimento e uma pertença ("olha as Torres Gémeas! Os americanos perderam-nas mas nós ainda temos as nossas", diz uma personagem, sem ponta de cinismo). Jia Zhang-ke não filma "por cima" das personagens, está mesmo mais próximo delas do que o distanciado Jacques Tati estava dos humanos que percorriam "Playtime".

E isto dá o quê? perguntarão. Dá um filme sobre o desenraizamento (há mesmo emigrantes russos, sublinhando o cosmopolitismo "globalizado" subjacente ao parque), sobre o mundo como ilusão e sobre a ilusão da mobilidade - num contexto inevitavelmente chinês, que evoca as migrações internas e o florescimento de "capitalismo" peculiar, é certo, mas rapidamente atacado de novo-riquismo. E dá um filme desolado, profundamente melancólico, algo de muito triste mas sem retórica nenhuma. Bastam os planos-sequência (é necessário precisar que Jia Zhang-ke pertence, no cinema asiático, à ala do "plano longo", não à da mesa de montagem como metralhadora) com que o realizador varre o cenário para meter lá dentro as personagens para que "O Mundo" quase dispense as palavras. Se fosse preciso encontrar um slogan, avançávamos com este: Michelangelo Antonioni nos arredores de Pequim. É isto, a "noia" moderna.

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