Pai (mãe) e filho

"Transamerica" é um veículo concebido para fazer brilhar uma actriz, Felicity Huffman, uma das estrelas da série televisiva, "Desperate Housewives", salientando a sua versatilidade, no papel de um transexual (Bree Osborne) que, enquanto se prepara psicologicamente para a operação, descobre que é pai de um jovem problemático. Este artifício de argumento encaixa num curioso aparato de "road movie": Bree e o filho, Toby, que só tarde descobre a condição sexual e a paternidade da mulher, disfarçada de benemérita religiosa, embarcam numa viagem de costa a costa, entre Nova Iorque e Los Angeles, com paragens em locais míticos do percurso, o Missouri, onde o jovem fora criado (e abusado sexualmente pelo padrasto), o Texas e o Arizona, local de origem de Bree, entretanto confrontado com o passado na figura de uma mãe possessiva e de um pai fraco.

Tal sinopse breve dá o sentido correcto à intervenção que o filme para si requer: pegar num imaginário transgressivo e apresentá-lo, cuidadosamente, sob o manto diáfano da fantasia e do melodrama psicologista. Não há riscos nem excessos, optando-se por uma espécie de neutralidade quase televisiva, sem que se renegue um lado de excepcionalidade no protagonista e de marginalidade mitigada na figura do filho, pequeno criminoso preso numa teia de enganos. Prostituto e drogado, ele inscreve-se no paradigma do desvio recuperável, surge resgatado pela transparência do seu bom fundo. Esta moralidade de classe média, casada, no ponto certo, com o filme de tese, possui a vantagem (e a desvantagem, depende da perspectiva) de nunca tomar partido, de se limitar a contar sem ponto de vista.

Como todo o "road movie" que se preza, "Transamerica" aparece recheado de episódios excursivos, pequenas narrativas encaixadas na história principal. E, se a rábula de Graham Greene, no solitário rancheiro índio, funciona enquanto mais-valia para a acção, o "sketch" do jovem "hippie" que rouba o "par" central roça o ridículo, de tal modo aparece como supérfluo e estereotipado. No mesmo sentido, toda a sequência na casa dos pais mais não consegue do que insistir no lugar comum de tentar justificar o "desvio" pela disrupção familiar, em cenário de um "kitsch" ilustrativo demasiado óbvio.

O próprio título, apontando para a duplicidade significativa de "trans", para superar as fronteiras sexuais e geográficas, coloca a fasquia a um nível de compreensão imediata, que não se compadece com o lado comprometido de uma narrativa que aspira a desvelar a "normalidade" das personagens alternativas. Felizmente, determinados momentos fulcrais (a partida de Nova Iorque, a análise anedótica de "o Senhor dos Anéis" como filme gay, a revelação do pénis de Stanley/Bree, o jantar com a família, no restaurante) revestem-se de um humor subtil e, por vezes, eficaz, a temperar a ternura cândida, que caracteriza a/o protagonista. O final resulta, inclusive, porque parece reunir os fios desalinhados de uma conciliação (im)possível.

Esta tensão entre a dor quotidiana, encenada com credibilidade, e o irrisório de uma situação bizarra confere a "Transamerica" a espessura que a simplificação de uma história algo previsível não faria supor. Não há surpresas de monta, todas reviravoltas são demasiado preparadas, estragando o efeito. Pela figura do jovem Toby (uma espécie de variação sobre o paradigma Leonardo DiCaprio, composta com elegância por Kevin Zegers), passa alguma desta unificação "a priori" pelo reconhecimento fácil, que sabemos, desde logo, como se efectuará.

Dito isto, há, neste filme, produzido em regime de pequena película independente, por William H. Macy (marido da estrela), um lado simpático e despretensioso que o torna um objecto curioso, quem sabe se um futuro filme de culto.

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