Grosseira ilusão

É sabido o efeito desarmante do Natal, o modo como o "espírito da quadra" implica um baixar da fasquia sentimentalista e uma permeabilidade a gestos (ou só pensamentos) que durante o resto do ano não teriam nem sentido nem conveniência. De certa maneira, "Feliz Natal" é um filme sobre esse efeito, mas também é um filme sob esse efeito (e é o que o perde).

Expliquemos melhor. É o segundo filme que nos chega de Christian Carion depois de "Uma Andorinha Fez a Primavera", um filme sobre o "desaparecimento do campo" e da agricultura tradicional na Europa comunitária. Já era meloso até dizer chega, mas antes de ir ao mel é curioso começar por notar esta curiosa inversão: é que se o filme da "Andorinha" era um lamento pelas alterações que a Europa comum (ou a "Europa", com a devida vénia) trouxe aos modos de vida ancestrais, e nesse sentido um canto mais ou menos empático do "isolacionismo", "Feliz Natal" é o seu exacto oposto, uma celebração da "comunidade europeia" (aqui sem o sentido burocrático da expressão) e da solidariedade trans-nacional. Palco: as trincheiras da I Guerra, por volta do Natal de 1914. Facto (verídico, e ao que parece, não raro): uma celebração natalícia espontânea que reuniu em terra de ninguém soldados e oficiais alemães, franceses e escoceses, a poucas dezenas de metros das respectivas trincheiras.

Se se tratar de resumir a história de "Feliz Natal" pouco mais há a acrescentar. Esse momento é o "clou" do filme, a sua razão de existir, e o resto ou é preparação ou consequência (o epílogo mostra-nos apenas a pouca graça que as altas patentes dos três exércitos acharam ao convívio, aparentemente para que o espectador se indigne perante tanta "incompreensão"). Há uma boa ideia logo para a abertura do filme, com crianças em escolas britânicas, alemãs e francesas a cantarem hinos patrióticos (ou mais do que isso, hinos de ódio ao "inimigo" que falam de "matar o francês" ou "matar o alemão"), maneira de sugerir essa guerra surda que é a desumanização e estereotipação do "outro lado" (e que é condimento de qualquer guerra, fria ou quente). Depois, Carion limita-se a conduzir as suas personagens, em montagem alternada e "tripartida", rumo a esse clímax - em que um tenor alemão vai à trincheira cantar a "Heilige Nacht" que depois, do outro lado, os escoceses começam a acompanhar à gaita de foles antes de responderem com canções populares do seu país (e só os franceses, curiosamente, não cantam coisa nenhuma). Que mal há nisto, se isto até foi verdade (e todas as guerras, talvez só as "modernas" não, têm histórias destas: a II abunda nelas, talvez por ser um tempo em que os soldados ainda soubessem que ser "soldado" é um papel representado por um homem)? Nenhum. Renoir até usou a I Guerra para contar uma história de solidariedade entre oficiais inimigos na "Grande Ilusão", título clássico do cinema francês e por causa do qual nos "Cahiers" chamaram ao filme de Carion "Grosseira Ilusão", expressão que nos apetece copiar. O problema de "Feliz Natal" é o auto-embevecimento, a bebedeira sentimentalista que lhe corta a lucidez e lhe impede a moderação, o tom pasmado e solene de quem descobre a "solidariedade" (mas, afinal, "somos todos europeus") como se nunca tivesse pensado nela e a exibe com um enorme letreiro a instruir o espectador: "agora espantem-se lá com aquilo de que a humanidade é capaz" (e muitos pontos de excalamação). O mal não está em filmar a quebra natalícia na fasquia sentimentalista; está em filmá-la debaixo do seu efeito, e fundir o olhar com o seu objecto. Donde, uma enorme indigestão.

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