Orson welles o inacabado

O "Don Quixote" de Welles ficou como o mais mítico projecto inacabado do cineasta de "Citizen Kane". Mas não foi o único, longe disso, nem foi, em termos pessoais, o mais dramático. Welles sempre teve uma relação distendida com o seu "Don Quixote", e nunca o considerou como um "filme inacabado", antes como um filme que ainda "não estava acabado" - não havia drama nenhum, era um filme que Welles "ia fazendo" e no qual trabalhou literalmente até ao fim da vida (Welles morreu em Outubro de 1985 e tinha passado parte do Verão desse ano sentado à moviola, entretido a colar, a cortar e a experimentar).

Tinha um carinho especial por este filme, que encarava como um "home movie": "Por que raio é que uma pessoa não pode fazer um filme para si própria, por que razão terá obrigatoriamente que o mostrar? E "Don Quixote", paguei-o integralmente do meu bolso, pelo que ninguém tem o direito de me vir chatear". Aliás, aborrecia-se tanto com as perguntas sobre "Don Quixote" que terá chegado a manifestar a intenção de baptizar a versão definitiva com o título "When Are You Going to Finish Don Quixote?"...

Não chegou de facto a acabá-lo, pelo mero infortúnio de uma morte prematura. Estava praticamente tudo rodado (faltava, segundo Youssef Ishaghpour no seu livro-colosso sobre Welles, "Une Caméra Visible", uma cena de efeitos especiais) mas faltava o essencial; e o essencial, para Welles, era (desde "Citizen Kane") a montagem: a sua confiança nos poderes mágicos da montagem era tanta que rodou "Don Quixote" de improviso, sem aquelas preocupações técnicas (os planos ligam? Há "raccord"?) que são o bê-a-bá do "métier". Era na montagem que o filme se faria e decidiria.

Se é por isso que este "Don Quixote" nunca poderá ser mais do que uma compilação/aproximação, pela mesma razão é forçoso recuar à história dos "inacabados" de Welles a tempos mais remotos. Mais exactamente, ao seu segundo filme, "The Magnificent Ambersons" / "O Quarto Mandamento", quando a RKO lhe retirou o controlo sobre a montagem final (e este sim, foi um desgosto para Welles). Por ironia, durante a montagem dos "... Ambersons" Welles estava na América do Sul a rodar aquele que ficaria como outro lendário "inacabado": "It"s All True", mosaico sobre a América Latina a rodar no México e no Brasil, inicialmente patrocinado pela política rooseveltiana de "boa vizinhança" para conter a influência do nazismo no continente sul-americano. Welles rodava de dia e à noite tentava "teleguiar" a montagem (a cargo de Robert Wise) dos "...Ambersons", mandando furiosamente telegramas cheios de indicações - sem efeito: "Destruíram o filme, e destruiram-me", diria mais tarde. "It"s All True" ainda teria menos sorte; o projecto foi abandonado, Welles nunca conseguiu entrar na posse do material (pertença da RKO), e só no princípio dos anos 90 se pôde chegar a uma montagem que compilasse a "footage" de Welles e nos aproximasse do que podia ter sido o seu filme.

Há outros inacabados no espólio de Welles. "The Deep", "thriller" em alto mar baseado na mesma história que Phillip Noyce adaptou nos anos 80 em "Dead Calm"; um "Mercador de Veneza" rodado na cidade dos doges; "The Dreamers", projecto iniciado em 1980 a partir de uma história de Karen Blixen; "The Other Side of the Wind", rodado no princípio dos anos 70 com as mesmas fontes de financiamento franco-iranianas (o produtor era um primo do Xá) que possibilitaram o mais fascinante dos Welles "tardios" ("F for Fake"). E isto para falar apenas de casos em que subsistiu documentação concreta, material filmado, exaustivo ou meramente indicativo e sem mencionar o carácter inacabado de "capelas imperfeitas" ("Immortal Story" ou os filmes shakespeareanos, "Macbeth", "Othello" ou "Falstaff"), ou de trabalho que nunca chega verdadeiramente ao fim, de praticamente tudo o que Welles filmou a partir dos anos 50 (há nada mais nada menos do que sete montagens distintas de "Confidential Report").

É curioso reparar, por outro lado, que este carácter "instável" da obra é reflectido por ela própria - e que esta tensão gerada pelo convívio permanente com a iminência do fracasso, pela ameaça do desfasamento entre a "visão" (ou o "visionarismo") e a sua concretização está lá, desde "Citizen Kane". Ishaghpour, no livro citado, refere todas as dificuldades práticas que contribuíram para o "inacabamento" de tanta obra wellesiana; mas não deixa de apontar a pista da própria "natureza" de Welles, grande monstro criador para quem a "pulsão" criativa se sobrepunha não raras vezes ao objecto da criação - e que se mutliplicava em projectos atrás de projectos, em projectos simultâneos a outros projectos: Welles rodava um filme mas pensava em mais cinco ou seis ao mesmo tempo, escrevia, desenhava, imaginava, perdia o interesse, começava a rodar um filme e percebia que o filme que queria fazer era outro (e às vezes começava a fazê-lo: "The Deep" começou na Jugoslávia, quando Welles estava em Sarajevo para conceber um filme sobre a história da cidade). Um homem às voltas no seu próprio labirinto criativo, incapaz de não obedecer à sua própria natureza caótica - e é bem verdade que a mais memorável citação da história da rã e do escorpião está num filme de Welles...

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