À boleia com Dom Quixote e Sancho Pança

O "Dom Quixote" de Orson Welles não cumpre só o itinerário do texto de Cervantes. A dada altura, Sancho Pança surge numa praça de touros em busca do seu cavaleiro da triste figura - ou, em alternativa, de uma televisão (já agora: Welles não filmou apenas na Andaluzia, mas também no México e em Itália).

Mais: um dos primeiros encontros (e confrontos) de Dom Quixote é com uma Vespa. É por este jogo de anacronismos, entre outros, que Miguel Serras Pereira, tradutor de uma das duas edições portuguesas mais recentes do romance de Cervantes, publicada pela Dom Quixote este Verão (a outra foi realizada por José Bento, para a Relógio d"Água), e admirador confesso do filme de Welles, diz que esta "não é uma adaptação cinematográfica do romance de Cervantes". "É um filme que parte das personagens de Cervantes para um argumento original no qual as glosas da obra de Cervantes aparecem como aparecem outras que não pertencem ao romance original."

No "Dom Quixote" de Welles convergem as personagens míticas - ou "eternas", como lhes chamou o cineasta no livro-entrevista com Peter Bogdanovich - de Dom Quixote e Sancho Pança, o próprio processo de rodagem do filme, e um registo documental da Espanha franquista (método que Walter Salles seguiu em "Diários de Che Guevara", por exemplo), onde a tradição (festas populares, tauromaquia, religião, ruralidade) convive com os primeiros sinais de "progresso" ou "modernismo" (as urbanizações, que Welles descreve como "agressões do turismo").

Segundo Serras Pereira, o filme "parte das figuras de Dom Quixote e de Sancho Pança para fazer uma viagem numa Espanha actual [à altura das filmagens], dos anos 60. São uma espécie de guias de que ele se serve para as suas próprias preocupações. Orson Welles está interessado numa Espanha franquista, na sua própria relação com Espanha", que, como está explícito no filme, é de fascínio. "Nesse sentido, ao servir-se do "Dom Quixote" para uma viagem", diz o tradutor, Welles "retoma uma tradição da literatura europeia pós-cervantista". Serras Pereira dá como exemplo o livro de Thomas Mann, "Travessia com o Quixote", que "é uma espécie de diário de bordo": Mann "foge para o exílio americano de uma Europa sob a ameça nazi e isso é acompanhado de uma leitura do "Dom Quixote"".

É verdade que Welles se toma de grandes liberdades em relação à obra de Cervantes. De acordo com Serras Pereira, só "o início do filme é o mais fiel" ao romance original. Mas será um filme próximo do espírito do romance. Como a obra de Cervantes (e como tantos filmes de Welles), o filme é tanto sobre a narração da história como a própria história em si. "Orson Welles interroga o próprio cinema, põe em questão o que está a fazer ao mesmo tempo que o faz. E isso é um legado do grande género literário que a Europa moderna inventou, que é o romance - um género que se integra a si próprio." E que Cervantes foi o primeiro a concretizar, justamente em "Dom Quixote"? "Em certo sentido, "Dom Quixote" é o primeiro romance. Tem alguns precedentes. Mas é o caso em que essa forma nova emerge com características que se mantêm até à actualidade", afirma Serras Pereira.

Para o tradutor, "um filme tem de valer por si próprio, independemente da obra à qual vai buscar o argumento"; deve "transmutar, pelos meios próprios do cinema", a obra original, "fazendo qualquer coisa de afim". Mesmo num filme inacabado, imperfeito, difícil, que agora emerge numa leitura alheia, Welles conseguiu-o.

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