Wallace & gromit very british

O que é que define um inglês? Chá, para começar. Num extra do DVD que reúne as curtas de Wallace & Gromit, uma senhora japonesa com ar de quem acha tudo engraçado, diz: "Eles bebem chá todos os dias." Gromit enche a chávena de chá; Wallace cai do céu sem falhar a cadeira e a roupa veste-o, literalmente maquinalmente - começa uma nova aventura de Wallace e Gromit.

Desta vez, têm peripécias para 85 minutos - "A Maldição do Coelhomem" é a sua primeira longa-metragem. Não que precisassem de uma longa para serem famosos. Afinal, desde que foram à lua, na primeira curta, "A Grand Day Out", os filmes de Wallace & Gromit já ganharam dois Óscares. Mas agora que o realizador Nick Park descobriu que a simples dupla que criou - um "gentleman" inglês, um pouco tosco, e o seu cão, que fala silenciosamente com as sobrancelhas - desembaraça-se com histórias compridas, não há como pará-los. Se era preciso uma prova dos nove, ela está ultrapassada: Wallace e Gromit chegam a todo o mundo; entram no imaginário de miúdos e graúdos - o sucesso de "A Maldição do Coelhomem" atinge proporções tão gigantescas quanto o coelho que aterroriza os vegetais no filme.

nick park, alma gémea. Um estudante numa escola de cinema guardava desenhos num caderno e iniciava um pequeno filme a partir dos esboços. Chamava-se Nick Park. Até concretizar 23 minutos de animação iam ser precisos vários anos, deixar a escola e juntar-se à companhia de animação Aardman. A produtora já tinham conquistado fama, na TV inglesa, com uma personagem que se moldava incessantemente - Morph - e que inspirava futuros realizadores de animação como o próprio Park. Os fundadores da Aardman - os realizadores e produtores David Sproxton e Peter Lord - reconheceram em Park uma alma gémea quando o encontraram: Park sabia o que fazer com a plasticina.

Sproxton e Lord costumavam ter uma "private joke": quando produziam uma nova sequência de animação, perguntavam-se se ela faria o nome da Aardman. Há uma sequência, que talvez não tenha feito o nome da Aardman por si só, mas que se tornou inesquecível. Era uma das primeiras cenas que Park animava, acabado de entrar para a companhia: uns frangos sem cabeça dançando uma coreografia "sexy" em palco, ao som de "Sledgehammer", de Peter Gabriel. Park ia tornar-se a imaginação mais poderosa da Aardman, as mãos com mais perícia.

Vinte anos de momentos históricos deram para David Sproxton conhecer bem o realizador que conquistou três Óscares para a Aardman - dois por filmes de Wallce & Gromit, um por "Creature Conforts". David Sproxton, sem qualquer problema de ego, fala ao Y por Nick Park e fala de Nick Park, com prazer. Sabe que a primeira longa de Wallace e Gromit não foi a última. Explica que, por enquanto, Park ainda está a promover "A Maldição do Coelhomem", no Japão, mas tem a certeza que, depois de um merecido descanso (o filme demorou cinco anos a ser feito), o realizador vai recomeçar a escrever os próximos episódios da vida de Wallace e Gromit.

"O desejo deles de fazer o bem no seu mundo leva-os a inventarem coisas e há imensas possiblidades nisso", adivinha o produtor. Nick Park convive com as personagens ininteruptamente - interrompeu essa conviência durante a realização da primeira longa da Aardman, "A Fuga das Galinhas" - e Wallace e Gromit fizeram o realizador tanto quanto o realizador os fez a eles. Nick Park não se cansa de Wallace e Gromit - nunca nos cansamos de quem é tão próximo - e não há razão para pensar que os espectadores se cansem. "São personagens tão boas. Ideias assim não surgem muitas vezes. É como o "franchising" do James Bond. Quer dizer, quantos filmes se podem fazer do James Bond?", pergunta retoricamente Sproxton. Wallace e Gromit, como Bond, já são um clássico. E numa altura em que os ingleses andam aflitos a tentarem definir o que é ser britânico, Wallace e Gromit, como Bond, personificam uma "britishness", como Park admite no "making of" de um dos primeiros Wallace e Gromit. "Very British" - David Sproxton está de acordo.

O que é que define um inglês? Pode ser ter um gnomo no jardim ou dormir preocupado com o estado de crescimento do vegetal preferido no quintal. "O que é que define um alemão? O que é que define um sueco? O que é que define um italiano? Há sempre uma caricatura de uma nação", constata o produtor. Wallace e Gromit usam da caricatura como base e como limite.

O que é que define um inglês? A melhor resposta, ninguém pode contestar, é: o sentido de humor. É por isso que no Japão, na Alemanha, na América, em todos os continentes - com ou sem chá como hábito, com ou sem gnomos nos jardins, com ou sem competições de enormes vegetais a dominar cidades pequenas - há fãs de Wallace e Gromit.

em roma, sê romano.

"A Maldição do Coelhomem" é totalmente "home-made" - nos estúdios da Aardman em Bristol. Mas nasce de dinheiro americano, parte do contrato com a DreamWorks, de Steven Spielberg, para cinco longas-metragens de animação ("A Fuga das Galinhas" foi a primeira). A estreia mundial não aconteceu nem em Inglaterra nem nos EUA, mas na Austrália. É que, assegura Sproxton, do outro lado do mundo gostam tanto de Wallace e Gromit como na ilha mãe. Há uma explicação plausível: "Os australianos adoram gozar connosco", ri-se David Sproxton.

Se há característica que torna o humor inglês apelativo no resto do mundo, segundo Sproxton, é o facto de ninguém ser capaz de se rir tanto dos ingleses como eles próprios. "Somos muitas vezes vistos como frios, mas, na realidade, temos grande sentido de ironia e não nos levamos a sério. Somos bons a rirmo-nos de nós próprios."

"Oh, Gromit, eu não quero ser um coelho gigante!", Wallace dá pena e Gromit move as sobrancelhas comoventemente - como é que, desta vez, vai safar o dono? Wallace está apaixonado, mas engole em seco cada vez que se aproxima de Lady Tottington. Wallace consegue inventar máquinas nunca vistas, mas que raramente dão certo. Wallace, se lhe derem queijo, não precisa de mais nada.

O que é que define um filme inglês? Uma certa melancolia, que impregna personagens, vinda directamente da infância de Park. O que é que define uma comédia inglesa? A palavra "loser" soa bem. "Wallace é mais um falhado do que um vencedor. Quer dizer, vive sozinho com o cão. Se se explicasse isto a um americano, ele ia dizer que se trata de uma família disfuncional. E ia dizer que é um mau ponto de partida para uma comédia. A comédia americana baseia-se em aspiração e ambição."

Diferenças à parte, os americanos quiseram trabalhar com os ingleses. Os ingleses da Aardman não sonhavam com Hollywood, mas Hollywood sonhou por eles. O número de animadores a trabalhar cresceu, o número de cenários aumentou astronomicamente, os orçamentos apresentam figuras nunca antes vistas. A ambição claro que cresceu, mas sobretudo no que diz respeito às histórias que se podem fazer e à caracterização minuciosa que se pode conseguir. "Se se falasse com Nick Park há 10 anos e se se falar agora percebe-se que para ele, os "gags", as personagens, e o divertimento que quer ter - a filosofia - não mudou de todo."

Imagina-se os americanos a rondar a produção e a tentar controlar as piadas e os gestos das personagens, para torná-las mais adequadas, para satisfazer aquele ou o outro público. Imagina-se os americanos a contar notas e fazer o balanço à vida de Wallace e Gromit. Nos estúdios de Bristol os americanos não têm hipótese - em Roma, sê romano. "Estar em Bristol, e não em Hollywood e nem sequer em Londres, ajuda-nos a mantermo-nos fiéis à nossa filosofia. Não temos pessoas de fora a dizer: "faz assim ou faz assado."" Mesmo que tivessem, fica-se com a impressão que Park e os produtores da Aardman não se iriam deixar convencer. Segundo Sproxton, foi assim que puseram as cartas na mesa: "Se querem fazer filmes à Hollywood, façam-nos em Hollywood. Nós não podemos fazer um filme à Hollywood. Podemos fazer um filme atraente, com sensibilidade britânica. Um filme inglês e europeu. Porque é onde vivemos. Mas podemos trazer qualquer coisa de diferente, tão boa como o que vocês fazem. E é assim que deve ser", David Sproxton termina entusiasmado. "Acho que perceberam. Aliás, essa é a razão para fazer um negócio destes. Ter outro estúdio, como nós, a trazer trabalho diferente ao mundo que eles ficam felizes por financiar."

good work, lad.

De uma cidade inglesa para o mundo, como sempre, do particular para o universal - a Aardman tem muito para dar. Fazer peregrinações a Bristol pode ser uma benção para qualquer aprendiz da magia da animação. Olhar para as personagens quietas, contar os pormenores dos cenários, ver os planos iguaizinhos nos "storyboards" - a Aardman sempre quis proporcionar essa experiência e foi arquivando, meticulosamente, o material dos filmes.

Os cenários dos primeiros Wallace e Gromit, a máquina de fazer tartes de "A Fuga das Galinhas", os animais, premiados com Óscar, de "Creature Comforts" desapareceram há três semanas, num incêndio nos armazéns da Aardman. O que não se apaga, o que fica, se formos registando, são as histórias que as personagens reais da Aardman têm para contar. "Space!", imita David Sproxton e pode-se imaginar, ao telefone, que abre os braços. Era assim que fazia o jaguar de "Creature Comforts". Em cima de um tronco, enjaulado, o jaguar encolhe os ombros, abana a cabeça, gesticula com as sobrancelhas. Fala inglês com o cantar de um brasileiro, sem tirar nem pôr: "No Brasil, você tem espaço. Embora, não haja tanto avanço tecnológico... Mas você tem espaço! Nós precisamos de espaço para sentirmos que fazemos parte do mundo e não uma espécie de objecto numa caixa." David Sproxton lembra que, primeiro, ouviu a voz gravada. Depois, viu o jaguar de argila a ser animado. Mas, quando viu imagem e som juntos, confirmou que "o todo é maior que a soma das partes". A sensação foi: "isto é que é a magia do cinema!"

O animador e realizador a comandar o jaguar era, claro, Nick Park. A técnica usada não era inventada por Park - Sproxton e Lord tinham começado a usar conversas de pessoas reais para construir filmes de animação que eram autênticas peças de documentário, com as figuras de barro a mimar personagens de rua - mas na série que punha os animais a falar das suas condições de vida, "Creature Comforts", Park estava a estabelecer características que ficariam como a imagem de marca da Aardman.

A boca enorme do jaguar em movimentos perfeitos não deixa acreditar que a voz do Jaguar é emprestada por um estudante brasileiro a falar das suas condições de vida. A expressão, os gestos, são tão humanos quanto as galinhas de "A Fuga das Galinhas" ou o cão Gromit. "O Nick teve uma influência fenomenal em muitos sentidos", confirma Sproxton. "Creature Comforts" trouxe o primeiro Óscar para a cantina dos estúdios da Aardman. O segundo foi conquistado pela segunda curta de Wallace e Gromit - "The Wrong Trousers". "No festival de Veneza, para nossa consternação, "The Wrong Trousers" teve uma ovação de pé. Uma curta de meia-hora ser aplaudida de pé é extraordinário", recorda Sproxton. "Para dizer a verdade, eu e o Nick nem sabíamos como reagir. Foi assustador, porque pensámos: "Meu Deus, se a audiência difícil do festival de Veneza reage assim, Deus sabe como é que o público em geral vai reagir." Provavelmente, David Sproxton terá dito a Park, como Wallace sempre diz a Gromit, no seu delicioso sotaque inglês: "Good work, lad."

Sugerir correcção
Comentar