Aurora: um eléctrico chamado desejo

Quando chegou aos Estados Unidos, Murnau vinha aureolado como autor do terror codificado em arte ("Nosferatu", 1922), como experimentador consumado, fazendo da visualidade um programa radical ("O Último dos Homens", 1924) e como transformador da literatura e dos mitos germânicos em formas fílmicas ("Fausto", 1926). Por via do seu prestígio, "Aurora" (1927) é um filme inteiramente livre, transpondo o ideário expressionista para o pragmatismo adaptável da máquina industrial hollywoodiana.

Encena uma obsessiva (e excessiva) história de amor em poderosas dicotomias: amor/morte; dia/noite; campo/cidade; Bem/Mal. Logo no início, a perturbar a harmonia do par amoroso, surge uma figura vampírica (a mulher "vamp" da cidade) que desencadeia as forças maléficas, pedindo a imolação sacrificial da mulher-anjo (a subtil Janet Gaynor), presa a um estereótipo conservador do amor sem sexo. Aliás, uma das imagens mais fortes desta primeira parte do "expressionista" drama em gente, fazendo do campo o espaço do Bem, passa pela surreal irrupção de um eléctrico que "viola" a floresta, ao uni-la a uma cidade de confusão e perdição, encarnação de uma "metrópolis" prenhe de tentações e de subversões.

Sob o signo da noite e da lua, gera-se o clima ideal para desequilibrar as forças harmónicas da natureza. Possuído por um impulso maléfico, o Homem desafia a ordem estabelecida e apenas se reconcilia com ela, depois de afrontar o mundo numa das sequências mais telúricas e essenciais da História do Cinema: a da tempestade no lago em que se perde, ocasionalmente, o objecto do amor, a mulher recuperada, em acto quase miraculoso, qual Ofélia resgatada das águas do esquecimento e da morte.

Embora a noite e a cidade, com a vertigem do parque de diversões ou a iluminação postiça de pequenas luas substitutivas, como candeeiros do restaurante, representem o Mal ameaçador, é no seu seio que o par "desavindo" se reencontra: projectado como no cinema na cerimónia de casamento nocturno, a que assiste, refazendo os seus próprios votos; desafiando as leis da física (e da lógica cinematográfica), quando se beija e o trânsito se adensa à sua volta, em prodigiosa utilização da sobreimpressão.

O real surge, em "Aurora", como uma transparência fílmica, para servir a manipulação total das imagens. Tudo é cinema, tudo é consciência da mobilidade da representação; até os intertítulos reflectem a distorção que o olhar coloca sobre o poder deliquescentes dos objectos e dos sentimentos. Quando o par, confrontado consigo e com os dados da sua existência e subsistência, pretende perpetuar-se numa fotografia, é com a imagem invertida na câmara escura e com a magia "voyeurista" do fotógrafo que nos deparamos. A imagem debruça-se sobre si própria, a tragédia transmuta-se em comédia burlesca e regressa sempre ao lugar do crime. O sexo perfila-se por detrás do amor e o epílogo exige que o cabelo da heroína "angélica" se solte em desafio às regras de um mundo de símbolos e de sombras: o porco que se solta na feira abre para a boa-sorte que inverte o sentido trágico da narrativa; a tempestade começa na cidade antes de transformar o lago em túmulo que devolve a morta à predisposição para o amor carnal. O eléctrico transporta o desejo, fazendo com que o sexo regresse ao espaço idílico, em que Homem e Mulher jogam um novo Jardim do Éden, investido de pecado e de redenção, como no cinema. Porque a luz que se abre sobre o novo dia, metáfora de recuperação e de eterno retorno, também se chama cinema.

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