Tim burton na terra do nunca

Pelo menos desde "Os Fantasmas Divertem-se" (1988), Tim Burton trabalha numa "terra do nunca", em que o fantástico confina com o imaginário infantil travestido: em "Batman" (1989) e "Batman Regressa" (1992) transformava o "comic" original numa fábula expressionista sobre os malefícios da Megalópolis; em "Eduardo Mãos de Tesoura" (1990) revisitava o universo da Disney, criando um angustiado Pinóquio para adultos; enquanto autor-produtor de "O Estranho Mundo de Jack" (1993) afrontava o conto de Natal desconstruído, em pesadelo de um novo modo de cruzar referências; em "Ed Wood" (1994) aproveitava o pretexto de um "biopic" do "pior cineasta do mundo" para se aproximar do irrisório de uma indústria de sonhos, exposta e vulnerável; em "Marte Ataca" (1996) estabelecia a caricatura de um género, a ficção científica, apostando num excesso que questionava as balizas ficcionais e ironizava com o acto de filmar, muito próximo das propostas estéticas do surrealismo. Com "A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça" (1999), centro distribuidor da sua relação profunda com o fantástico literário, operou-se uma pequena viragem. Ao adaptar um clássico de Washington Irving, "The Legend of Sleepy Hollow", um dos textos fundadores da literatura norte-americana, Burton deu conta de uma dualidade produtora de sentido: assumiu a ligação ao gótico germânico e traçou as contiguidades com o espaço transposto de uma ficção "adulta", transferida para um mundo "infantil" de terrores e oníricas premonições. "Sleepy Hollow" instituiu o mundo de Tim Burton como uma plataforma de reversíveis ficções, em que o espaço se reveste de uma espessura de seriedade literária e de verosimilhança e em que o tempo se anula, tornando o passado presente, um presente da mente, junto da matéria dos sonhos e dos sonhos provocados.

Talvez porque o filme colocava a fasquia alto, os filmes seguintes esbarraram na incompreensão da crítica: "O Planeta dos Macacos" (2001) soava a "pastiche" deslocado da sua obra pelos ecos do original; "O Grande Peixe" (2003), fabulosa meditação sobre as fronteiras da ficção enquanto metaficção, parecia deslocar-se para um território estranho, em que o fantástico nascia do real, sem que se sinalizassem, de forma clara, os objectivos da sua inscrição coerente na surrealidade burtoniana.

depp, mãos de chocolate.

"Charlie e a Fábrica de Chocolate" aparece neste contexto, marcando o regresso ao fantástico com a perversidade de um olhar iconoclasta e adaptando um "clássico" de Roald Dahl, já passado ao cinema pelo artesão Mel Stuart, "Willy Wonka and the Chocolate Factory" (1971), com Gene Wilder no protagonista, Willy Wonka, o dono da mítica fábrica de chocolate. A genialidade da aventura de Burton passa, antes de tudo, pelo arrojo do "casting": Depp "é" (ainda) Eduardo Mãos de Tesoura e concentra na sua "persona", e no boneco articulado que constrói, o material para a metamorfose, algures entre a Dorothy de "O Feiticeiro de Oz" e o Michael Jackson de "Thriller", com toques de um Príncipe Valente irrisório, num registo de patética farsa, desarticulando qualquer aparência de real e mimando a impossibilidade da sua existência fora do contexto mágico do seu mundo de chocolate feito.

Tal como nos filmes mais conseguidos de Burton, a oposição faz-se na contraposição das visões arquitectónicas: a pobreza de Charlie, reminiscente de um realismo "à la Dickens", fecha-se na tortuosa cabana que ecoa, em três dimensões, o desenho expressionista do cenário de "O Gabinete do Doutor Caligari" (tal como em "Batman Regressa", a matriz germânica aflora como sinal), enquanto a fábrica expressa o gigantismo "art déco" de uma descontinuidade militante.

O contraste é fulcral numa história previsível em que o Bem (Charlie, o garoto pobre, mas com família perfeita) triunfa sobre o Mal, encarnada por quatro "maléficas" crianças mimadas, vagamente representando quatro dos pecados capitais, em versão "pós-moderna", a Gula, a Ira, o Orgulho e a Luxúria. O artifício dos quatro bilhetes premiados, inseridos nas tabletes de chocolates (conformes ao original literário), resulta, na medida em que transforma o castigo em espectáculo fílmico.

Logo que entramos no interior da fábrica, guiados por "Depp, alma de chocolate", tudo explode em cor e música, como no mundo de Oz, com substitutos dos Munchkins (os Oompa Loompa, clones de um só actor, com o perturbante fácies de Deep Roy). A anulação de cada um dos candidatos "maus" ao prémio final dá origem a um número de grande musical, começando por uma luxuriante homenagem ao visual caleidoscópico de Busby Berkeley e evoluindo para mais modernos cambiantes, passando pelo disco-sound e pela coreografia à "la Michael Jackson", rimando assim com a caracterização de Depp, sempre ironizando com a sua própria máscara.

A relação de Wonka (Depp) com Charlie, a criança exemplar da fábula (Freddie Highmore), não pode deixar de remeter para "À Procura da Terra do Nunca", de Marc Forster, desenvolvendo uma química própria, de figurações de Peter Pan, em direcção a uma quase abstracção da correspondência criança-adulto, adulto-criança. Aqui tem que colocar-se uma das questões mais interessantes: tratar-se-á de um filme destinado às crianças ou de uma ficção adulta para interrogar o universo "infantil". E eis-nos em pleno no cerne da obra de Burton, da sua contradição estruturante: o que o "faz correr?" Que objectivos persegue? Apenas a transfiguração da fábula para reescrever uma relação fantástica com o mundo? Ou uma complexa visão caleidoscópica (e daí a função metonímica do uso de Berkeley) do tempo e espaços ficcionais, tomando por pretexto a imitação da infantilidade?

Pelo caminho deste "refúgio" numa nuvem de discutível escape, ficam o desemprego, a automatização do trabalho, o papel do "deus ex-machina" na reorganização do desequilíbrio, mas, sobretudo, um prodigioso divertimento cinematográfico, com uma pluralidade de citações: entre o "Feiticeiro de Oz e "2001, Odisseia no Espaço" grava-se um mundo de celulóide, autónomo, fascinante e perturbador.

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