Águas passadas paranóia

A carreira do brasileiro Walter Salles desde os tempos de "Terra Estrangeira" (1996) até esta incursão pela indústria americana com "Dark Water"/ "Águas Passadas", "remake" de um original japonês, é assaz curiosa: graças ao sucesso de estima de "Central do Brasil" (1998), candidato à oscarização, embarcou no igualmente bem sucedido "Os Diários de Che Guevara" (2004), exemplo acabado de um cinema "internacional", sem clara marca de origem, relançando-o em força no mercado americano.

E, no entanto, "Águas Passadas" mantém uma estranheza desenraizada que o coloca numa terra de ninguém, como a Roosevelt Island em que decorre. Mesmo sem conhecer o original japonês (de Hideo Nakata, 2002) - diz quem viu que haverá fortes coincidências na criação de atmosferas e na construção de cenários -, importa destacar que a principal força do filme reside no ambiente de paranóia prevalecente, obrigando a protagonista a um complexo percurso de terror, reminiscente de outros filmes de fantasmas e de assombrações.

O argumento tem poucas novidades: uma mãe divorciada disputa a custódia da filha com o ex-marido, refugiando-se, por razões económicas, num prédio degradado, onde se confronta com um bizarro porteiro (um Pete Postlethwaite de perturbadora máscara) e com misteriosas infiltrações e inundações de uma água escura, uma espécie de mistura entre barro e sangue. Tudo se adensa com uma história da fantasmática presença de uma criança abandonada pelos pais que acaba por "possuir" a mãe cobiçada e "disponível", numa sequência demasiado breve para tão extensos preliminares.

Os diálogos primam pela estranheza óbvia, a acção é praticamente inexistente, mais centrada em alucinações e em sugestões oníricas do que em factos que construam uma narrativa coerente. Jennifer Connely consegue ser convincente, mas tem que "lutar" contra uma personagem apenas esboçada, optando por um quase indistinto sonambulismo. A personagem mais interessante acaba por ser a do advogado, a que Tim Roth empresta um extraordinário humor, com relevo para o momento em que recebe no carro, como se estivesse no escritório, sem cair na tentação de tudo reduzir a uma rábula simplista. Se era suposto aterrorizar o espectador, então os objectivos não foram alcançados: desde o "flashback", mostrando a protagonista em criança, abandonada pela mãe, até aos passos no andar de cima e as omnipresentes águas que caem em gota ou em catadupa, tudo apresenta um terror exposto, denunciado, explicado, logo, muito pouco "terrífico". Que fica, pois, deste filme mediano com visual cuidado e seguros valores de produção, sem prescindir de um certo "look" artesanal? A criação de atmosferas, um olhar perturbante sobre o gigantismo arquitectónico do prédio em que decorre a acção, uma rima surda com "Rosemary"s Baby", de Polanski, e, sobretudo, o facto de a personagem de Jennifer Connelly escapar ao estereótipo de "aterrorizada", funcionando até ao fim como mãe protectora e filha abandonada. Já não é mau...

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