Aaltra easy riders belgas na finlândia

"Aaltra", filme belga, realizado e concebido pela dupla Benoît Delépine e Gustave de Kervern, também responsáveis pela interpretação das duas personagens principais, é um filme de pequeno orçamento, em granuloso preto-e-branco, aposta no humor negro, investe numa subversão irrisória do "road movie" com notável fluência. São coisas a seu favor. O argumento é simples e eficaz: dois vizinhos na zona agrária da Bélgica francófona, que se odeiam, são vítimas de material defeituoso, fabricado por uma fábrica finlandesa, e acabam por empreender juntos, em cadeira de rodas, uma longa viagem à Finlândia para descobrirem que Aaltra, gerida por deficientes como eles, mais não é do que uma pobre cópia artesanal da próspera Valtra.

A ironia trágica que ressalta deste jogo de enganos, encenado com episódios intercalares, pelas corridas de motocross em Namur e por acidentes vários, durante o percurso para Norte, domina a ficção. Com planos longuíssimos e a exploração de uma estética próxima do "cinema-verdade", "Aaltra" vive, sobretudo, de alguns "gags" bem conseguidos: a conversa com o velho senil, que fala da sua experiência no ex- Congo Belga, repetindo sempre a mesma fórmula; a estada em casa da família alemã para carregar a cadeira de rodas eléctrica, entretanto roubada a um casal de velhinhos; a troca das fábricas final, previsível e denunciada, perdendo, por isso, muito do impacte que poderia ter.

O referente mais óbvio é o universo rarefeito de Aki Kaurismaki que dá até a caução da sua presença física no papel do gerente da Aaltra, mas sentem-se reverenciais ecos do onirismo perturbado e perturbante de David Lynch (inexplicados planos, como o dos jovens nus no banco de trás do camião que dá boleia aos heróis) e um interesse próximo da "congelada" visão de Jim Jarmusch (da mesma "família" de Kaurismaki) pelos "destituídos da sorte", vagabundos de uma viagem sem grande sentido, "easy riders" de uma empresa burlesca, sem conteúdo burlesco.

Aliás, onde o filme falha é precisamente no "timing" para os sucessivos "gags", demasiado denunciados e lentos para produzirem o necessário efeito. Tudo se alonga numa inacção militante, com inúmeros pontos mortos e desnecessária acumulação de detalhes e de personagens supérfluas. O que poderia ser um surreal despiste da realidade (como, de certo modo, acontece em "Uma História Simples" de Lynch) perde-se numa "amável" melancolia, travestida de maldade representativa: o tão almejado "humor negro" não se compadece com a desconexão narrativa de uma alegoria (as personagens não têm nome, mas apenas função tipificada) cáustica, mas com tempo de reportagem televisiva.

Dito isto, não deve subestimar-se a graça de alguns momentos (em especial a sequência alemã) e a excelente prestação dos actores-realizadores, nunca se levando completamente a sério, sempre dentro e fora das personagens. É que "Aaltra" coloca com uma certa inteligência a sua própria contradição, entre o "realismo social" e uma surrealidade pouco subtil, mas revela-se tanto mais programático, quanto não escapa a comover-se com as peripécias que, supostamente, eram absurdas e distanciadas.

Sugerir correcção
Comentar