director"s cut continua incompreensível

"Donnie Darko" estreou-se nos Estados Unidos em Outubro de 2001. Na altura, J. Hoberman, crítico da "Village Voice" e um dos mais importantes críticos de cinema americanos, escreveu que era o primeiro filme estreado desde Setembro que parecia "não ter perdido sentido" face aos acontecimentos de dia 11 de Setembro. É curioso reencontrar agora essa ideia, porque se "Donnie Darko" não tem - nem podia ter - nenhuma relação directa com esses acontecimentos (o que não invalida que um nova-iorquino a pudesse estabelecer em Outubro de 2001), vêmo-lo outra vez, agora na versão "director"s cut", e o que ele nos sugere é uma coisa tipo "paisagem depois da batalha" (ou, mesmo, depois da "catástrofe"). Que batalha e que catástrofe, ninguém poderá explicar bem - é um dos encantos do filme de Richard Kelly, parecer um "film à clef" mas sem chave disponível, uma sucessão de mistérios sem explicação acessível.

Mas as personagens parecem exaustas, física e psicologicamente, respiram com fôlego de sobreviventes, e movem-se num mundo (típica comunidade suburbana americana ou pelo menos típico retrato cinematográfico de uma comunidade suburbana americana) que parece bloqueado, gasto, em coexistência com a sua própria ruína.

"Donnie Darko" é um filme de cataclismo sem cataclismo visível: e se o "apocalipse" é nele anunciado (numa estrutura narrativa pautada por um "countdown" para qualquer coisa encarada como o fim do mundo) nunca se chega a perceber bem se ele acontece, se já aconteceu, se não chega a acontecer. Por outro lado, saber situar cronologicamente o apocalipse não parece de extraordinária importância num filme onde a "filosofia da viagem no tempo" é elemento preponderante.

Por estas e por outras razões temos "Donnie Darko" na conta de um dos mais fascinantes filmes do "novo cinema americano" dos últimos anos (e é conta que não será beliscada mesmo que Richard Kelly, realizador nascido em 1975 que aqui assinava a sua primeira longa-metragem, não volte a fazer mais nenhum filme de jeito). Muito por causa da sua estrutura narrativa misteriosa, cheia de buracos, enigmas e coisas a que é difícil estabelecer um traço de união congruente (agora, na versão "director"s cut", impressionou-nos o tempo que se dedica, nas cenas da aula de inglês, a um conto de Graham Greene, "The Destructors"), das suas tangentes à ficção científica (com exploração da teoria dos "buracos de minhoca" de Stephen Hawking), gerou cultos da mais variada ordem, incluindo cultos "descodificadores" (vai-se à Net e encontram-se milhares de "teorias gerais" sobre o que se passa, de facto, em "Donnie Darko").

Talvez mais na América do que na Europa, a crítica também se deixou fascinar, e por exemplo a insuspeita Amy Taubin pô-lo na lista dos dez melhores de 2001 da revista "Film Comment", entre um Jonas Mekas e um Manoel de Oliveira. Esta "dinâmica" assim gerada levou a que Richard Kelly concebesse uma montagem alternativa, supostamente fiel ao seu propósito inicial (impossível de impor na altura aos produtores, tratava-se de um estreante), que resultou nesta "versão do realizador". A sua exibição comercial configura, portanto, um misto entre "reposição" e "estreia" - é um filme um pouco diferente, mas continua a ser o mesmo filme. E felizmente (aqui tínhamos um pouco de receio) a história, apesar daquilo em que Kelly mexeu, continua tão incompreensível como dantes.

A versão do realizador.

Já iremos a essa história (tanto quanto se pode "ir à história" de "Donnie Darko"), mas por enquanto continuemos a imaginar um leitor que viu a primeira versão do filme - e falemos das diferenças mais perceptíveis nesta "versão do realizador". A que se nota imediatamente não se vê, ouve-se.


Passando-se nos anos 80 ("vou votar no Dukakis", diz uma personagem, assim situando o filme em 1988, numa das mais económicas localizações temporais em toda a história do cinema...), "Donnie Darko" revelava o seu coração de filme sobre a adolescência pela quantidade de "clássicos" da pop dessa década presentes na banda sonora (e até os The Church de "Under the Milky Way Tonight" Kelly ressuscitou). A abertura dava-se, ribombante, com a "lua assassina" dos Echo & the Bunnymen, "The Killing Moon" a sobrepor-se ao plano inicial (Donnie Darko a acordar numa estrada de montanha, depois de mais uma crise de sonambulismo, percebia-se na sequência). Ora, por razão misteriosa que só pode significar um "u-turn" na sedução fácil a partir do "bom gosto", na nova versão a canção dos Echo é substituída por uma dos... INXS ("Never Tear us Apart").

Outras alterações parecem mais fundas de sentido: a inclusão de uma cena (uma conversa entre Donnie e o pai) que, segundo Kelly, deixou Francis Coppola entusiasmadíssimo quando lha mostrou (Coppola terá dito que uma deixa dessa conversa, qualquer coisa sobre vivermos num mundo em que os filhos têm que se safar por si próprios porque os pais já não podem fazer nada por eles, "resumia" o filme). Mesmo assim, Kelly cortara-a da primeira versão. Como reduzira as referências a um misterioso livro ("A Filosofia da Viagem no Tempo", que conforme as fontes existe realmente ou não) cujas páginas são agora usadas, a partir de certa altura, como "separadores" ou "pontuações" entre sequências (para falar francamente é uma insistência que não nos deixa muito seguros sobre se Kelly terá tomado, aqui, a melhor opção).

Mas o que se passa, de facto, em "Donnie Darko"? Fazer um "resumo do argumento" é coisa mais difícil. Digamos que há um rapaz chamado Donnie Darko (alguém descreveu como um Holden Caulfield, a personagem do "Catcher in the Rye" de J. D. Salinger, reinventado por Philip K. Dick), interpretado pelo incomparável Jake Gyllenhaal; que há a sua família (um pai, uma mãe, e duas irmãs, uma delas Maggie Gyllenhaal, verdadeira irmã de Jake); que tudo se passa nos dias que antecedem a eleição presidencial americana de 1988 (o que para algumas más línguas faz do "apocalipse" a vitória de Bush pai); que Donnie é um adolescente perturbado, frequentador de psicoterapia, com problemas de relacionamento em geral e ataques de sonambulismo; que também é obcecado por sexo (e capaz de discorrer sobre a vida sexual dos Estrumpfes); que um dia cai em cima do quarto de Donnie um trem de aterragem perdido por algum avião; que Donnie não estava no quarto nessa noite porque fora chamado por um coelho gigante; e que a partir daí esse coelho gigante lhe enviará "mensagens" referentes ao fim do mundo a vir. Stop - a partir daqui é dificilmente descritível.

E o que é que seduz em "Donnie Darko"? Isto é mais fácil (exceptuando o que se refira a um "desamparo" de espectador, sozinho em território estranho sem mapa nem bússola, que o filme de Kelly permite como poucos filmes americanos têm permitido nos últimos anos). Entre outras coisas, deixamo-nos seduzir por esta "metafísica" bizarra e onírica que está no seu "osso" narrativo; por esta transfiguração da solidão e confusão da adolescência numa coisa cósmica, directamente relacionada com os mistérios do universo; pela maneira "plena" como Kelly é capaz de filmar as personagens, sobretudo as que à partida mais caricaturais seriam (uma professora de ginástica beata ou um "guru" interpretado por... Patrick Swayze); pelo arrojo com que Kelly se atira a contracções temporais como só Lynch seria capaz (a última cena, parecido com aquilo só na "Estrada Perdida").

Mas também, de facto, nada disto, por si ou em conjunto, é suficiente. O mistério de "Donnie Darko" é também o mistério da sua sedução - e esse só pode estar naquele ambiente de desolação sentimental "pós-catástrofe", na doçura e na melancolia com que as personagens passeiam a sua tristeza pela paisagem. E nisso, Kelly está sempre no tom certo, na nota justa, capaz de ser comovente da forma mais inesperada. Como o final, por exemplo (que até torna tragável uma canção de Gary Jules), onde "Donnie Darko", num último golpe de rins, se transforma em filme sobre a entrega e o sacrifício. Mas nunca ninguém saberá a que ponto Donnie se entregou, a não ser quem acredite na "filosofia da viagem no tempo".

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