Viagem na terra dos homens

Entra-se em "Adriana" por uma cena em tom dramático: um anúncio de uma morte (uma mulher que morre a dar à luz), um homem que expele a dor partindo um espelho. Mas logo se ouve, em comentário surpreendentemente fora de tom com o que era (é) o registo da cena, uma criada a avisar dos proverbiais 7 anos de azar que esperam quem parta um espelho. Descompressão? Sim, mas "dissonância", sobretudo, anúncio do filme a vir, entrada num "quase-burlesco" que está sempre a surpreender o espectador e, mais do que isso, a "desenquadrá-lo": para acompanhar o périplo de Adriana, o espectador terá se aguentar (ou, como diz Margarida Gil na entrevista ao lado, "aceitar") este balanço.

Não obstante, é dessa dor que parte o filme. Depois esconde-a, em narrativa de fábula: nessa ilha onde tudo começa, não voltou a haver "fornicação", não há mais nascimentos. Para "constituir família por métodos naturais", Adriana (Ana Moreira) será enviada pelo pai ao continente - e esse é o seu périplo. Primeiro, uma Lisboa que é um "mundo", quase sempre nocturno e subterrâneo, habitado por personagens que vivem numa semi-marginalidade, seja por classe (a de Isabel Ruth) seja por, digamos, feitio (Saturnino, interpretado por Bruno Bravo, travesti que faz números de playback num cabaret). E uma espécie de "intelectual blasé", David (Vítor Correia), tipificável como "sedutor" - e a cuja volatilidade Adriana resiste. E como já mais nada tem a fazer nesta Lisboa de espaço circular, parte para o norte (há uma intriga "factual" que justifica a viagem: Adriana vai, literalmente, à procura da sua identidade, depois de os documentos lhe terem sido roubados à chegada ao aeroporto).

No "norte" (convém, apesar de tudo, não levar demasiado à letra a geografia) Adriana encontra um mundo mais ordenado, e também um tempo (um outro tempo) mais ordenado - na sinalização de uma espécie de aristocracia rural onde a genuinidade já se mostrou permeável à falsidade (a usurpadora de identidades já lá ocupou um lugar). Aí, muito próximos de um mundo de "sonho" (há um chauffeur que é um miúdo, apenas porque sim e sem que tal se questione), mais jogos de sedução, desta feita mais nitidamente comandados por Adriana (é sobretudo aqui que, como diz a realizadora na entrevista, a sua inocência se aproxima da "perversidade"). E uma grande cena erótica, ou, se calhar melhor, uma grande elipse erótica - com Adriana, o aristocrata (um José Airosa magnífico em "renitência") e uma imagem de S. Sebastião. Depois, o regresso à ilha.

Tudo isto, e é um filme que abunda em peripécias, se desenrola num tom de "comédia verbal" coerente e vigoroso, de onde não se exclui o sotaque açoreano impecavelmente mantido por Ana Moreira, principal marca da estranheza de Adriana. E mais, "Adriana" mantém uma narrativa capaz de encontrar um ponto justo (sempre, ou quase sempre) entre o que é da ordem dela (da narrativa) e o que já é um sinal da sua irrisão - como diz a realizadora, não se pode olhar para o filme "à letra", mas isso não quer dizer que a "letra" não seja fundamental. Em parte, isso explica a sua estrutura episódica, o vai e vem entre personagens (sobretudo na sequência lisboeta), a acumulação de pequenos elementos (quase como "apartes", visuais ou sonoros), o estranho balanço, nas sequências açoreanas, entre a autenticidade do lugar e a impressão artificiosa do que há de "representação" nesse lugar. "Adriana" é um filme entusiasmante, inesperado e arriscado, vale a pena aceitar o seu desafio.

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