A vigília de um bravo

É uma daquelas raras obras em que somos constantemente surpreendidos, em que nos é dado o grato privilégio de nunca podermos adivinhar o plano seguinte, um daqueles filmes irredutivelmente singulares que só por si são um mundo - a isto se chama cinema

Poderá imaginar-se uma fábula cinematográfica que se aparente a um western onírico, burlesco e homoerótico, e para mais francês, ainda por cima fortemente enraizado no Languedoc e com o sotaque da região?

A coisa parece absurda e dito assim é mesmo um pouco. Acontece contudo que o "absurdo" é a redução industrial e de marketing dos filmes a categorias, que inclusive passou um pouco para todos os nossos discursos críticos, nem que seja quando no esforço de mediação com o leitor e potencial espectador sobre um objecto que ainda desconhece o bombardeamos de referências, quantas vezes perfeitamente incongruentes ou tão-só legitimadoras. Só que às vezes aparecem objectos completamente singulares, e de facto tudo o que acima se disse de Pas de repos pour les braves pode ser conferido - mas ainda mais importa aceder à sua espantosa singularidade.

Pensando bem, a revelação de Annaud Despleschin já tem uns quantos anos - La Vie des Morts data de 91, mas é reconfortante pensar que quatro longas-metragens de ficção transcorridas, está mais que confirmado ser ele um grande cineasta. E quanto ao resto de novas afirmações e de promessas concretizadas no cinema francês? O que mais vejo é uma reprodução tão entediante quanto a de Hollywood, sempre o mesmo naturalismo feito de diálogos intelectuais e parisienses, e nenhum sentido daquilo que precisamente se designou em francês de mise en scène. Até que bem recentemente surgiram dois casos de excepção: Alain Guiraudie e Eugene Green, este americano, mas hoje não só cineasta como o grande especialista da declamação barroca francesa.

Já agora vou fazer aqui um pequeno "desvio", ou para usar um termo apropriado ao barroco, uma "dobra" - o que, como se verá, nem vem assim tanto a despropósito como possa parecer num texto sobre Os Bravos Não têm Descanso - e dizer algo dos filmes de Green, Le Monde Vivant, Grande Prémio do IndieLisboa-2004, e Le Pont des Arts, exibido há pouco no Indie-2005.

Quando no suposto quadro medieval do primeiro vejo um jovem com trajes de hoje e um cão, e o jovem se apresenta como Cavaleiro e diz "este é o meu leão" e o plano é o do cão, a contradição entre a ficção e o visível supõe que o código da narração solicita o espectador a outro nível, que "ver" é também "crer" - e querer e desejar "crer". No momento sublime de Le Pont des Arts, o jovem suicida é salvo pela voz da Euridice que em disco canta o Lamento della Ninfa de Monteverdi - a "arte" é também uma "ponte" para além do real e do visível imediatos.

Pas de repos pour les braves é um filme em estado de vigília. Na primeira cena, Basile conta a Igor que vive ensombrado por Faftla-Laoupo (???), com o qual sonhou, e se voltar a sonhar, se voltar a adormecer portanto, esse sonho será o derradeiro. A falta de descanso, é essa vigília sonâmbula do filme, entre a lógica do sonho e os restos de uma realidade, aliás realidade particular de um mundo rural, numa ponte entre vivos e mortos (A Aldeia-Que-Vive e A Aldeia-Que-Morre), construindo uma extravagante cartografia paródica, com Buenozères e Onquecongue, que também se poderão pronunciar como Buenos Aires e Hong-Kong.

É uma Alice do Outro Lado do Espelho ou uma Zazie dans le Metro em terras de Ubu. Pode ser que os mortos de uma cena estejam de novo presentes nas seguintes, pode concluir-se que determinada cena supostamente preceda - caso a cronologia fosse linear - uma outra que contudo ocorreu há já muito. Ou se aceitam as regras do jogo ou não, ou se crê ou não crê, e por mim não sei como não crer, que a persuasão, a invenção, originalidade e brilhantismo de Guiraudie são imensas - assim esteja disposto e alerta o espectador para as solicitações.

Na parte final do filme, estão Johnny Got (aliás espécie de alter-ego de Guiraudie, inclusive fisicamente) e Basile acossados num quarto de hotel, e no diálogo das rememorações o segundo diz ao primeiro: Et aprés tu est parti pour une autre histoire - "e depois deste meia-volta" nas legendas. Não é que esteja incorrecto do estrito ponto de vista da tradução, mas aqui deve mesmo ser entendido à letra: "E depois partiste para outra história", que nunca se sabe que desvios, que dobras, que histórias, vão seguir estas personagens.

Os Bravos Não Têm Descanso é um filme sob o signo da imprevisibilidade, é uma daquelas raras obras em que somos constantemente surpreendidos, em que nos é dado o grato privilégio de nunca podermos adivinhar o plano seguinte, um daqueles filmes irredutivelmente singulares que só por si são um mundo - a isto se chama cinema.

Num plano completamente delirante, Igor entra pela taberna ou saloon (e mais não digo) a pedir querosene para a avionete. Saloon? Bem, falei da Alice de Carroll e da Zazie de Queneau, mas este filme, como as anteriores médias-metragens de Guiraudie, Du soleil pour les gueux e Ce vieux rêve qui bouge (e só por isso esta não é uma revelação absoluta, embora como estreia na longa-metragem seja uma confirmação considerável), é um universo masculino, aliás de um homoerotismo proletário que tenho as maiores dúvidas que encaixe nas construções culturais da categoria gay.

É como se as amizades viris dos westerns de Ford e sobretudo de Hawks (Rio Bravo, evidentemente) não pudessem mais ter lugar senão já plenamente investidas do desejo entre os homens, noutro território que não o west e senão como recriação onírica e fantasista.

É caso de dizer - "bravo!", há um cineasta.

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