Uma boa companhia pai e patrão

As pessoas vêem filmes ou argumentos? Vêem filmes ou limitam-se a aferir se o filme responde adequadamente aos tópicos do argumento? É uma questão curiosa: surpreendidos com este "Uma Boa Companhia" fazemos um "raid" pela crítica estrangeira e encontramos praticamente sempre a mesma ideia - que "Uma Boa Companhia" é uma crítica mansa e previsível à "desumanização" das relações laborais criada pelo gigantismo frio e impessoal das grandes corporações. Desolados, mas não foi este filme que vimos. Talvez fosse o argumento, talvez espremido o argumento seja só isso. Mas se for esse o caso, é óbvio que o filme não é o argumento.

Despachemos a história. Dennis Quaid é o chefe do departamento de publicidade de uma revista desportiva nova-iorquina. A revista é comprada por outro grupo económico, e os homens de confiança de grupo são colocados nos lugares-chave da revista, o que implica, para Quaid, uma despromoção (e para outros o despedimento). O novo chefe é um miúdo (Topher Grace), um executivo de "proveta", obcecado com o palavreado corporativo da moda ("sinergias" e afins) e com uma estratégia para a sua "carreira" - mas, mais importante, é um perfeito náufrago emocional. É por aí que o filme se desloca com subtileza: deixa de ser um discurso sobre "corporações" para passar a ser um filme sobre derivas emocionais e orfandades várias.

A "boa companhia" do filme de Paul Weitz (realizador de "American Pie" e "About a Boy") é uma melancolia difusa e uma tristeza só vaga e fugazmente redimível, expressa sempre com pudor e contenção. A economia mais preponderante no filme é a economia narrativa: repare-se nos três planos, ainda no início, que são o bastante para ficarmos a saber que Dennis Quaid suspeita que a filha esteja grávida, sem uma palavra e sem que a filha (Scarlett Johansson) apareça sequer em cena (há mais cinema durante estes segundos de "Uma Boa Companhia" do que nas duas horas e meia do mastodonte ridleyscottiano). Ou no modo como, durante essa cena, se caracteriza a personagem de Quaid, dos seus afectos familiares à sua condição social, homem de meia idade representante de uma classe média "contented" e já sem ambição nem, sobretudo, paciência para alterações na rotina.

Repare-se no modo como progride a relação (receosa) entre Grace e Scarlett, que salienta a inversão da própria relação entre Grace e Quaid. Grace, miúdo sem pai (nem mãe), vê-se patrão do homem que acaba por olhar como um pai (enquanto ele resiste a olhá-lo como mais qualquer coisa do que um patrão, o que é um problema) - e essa inversão, aquilo que cada um é aos olhos do outro para lá do estatuto "burocrático", é o motor do filme. Dada com um mínimo de detalhes, a história de Grace e Scarlett tem dois belos momentos: a primeira vez que ele vai ao quarto dela (na residência da Universidade), com a câmara a segui-la nos gestos de um romantismo doce e adolescente (um lenço a quebrar a luz do candeeiro, um pau de incenso que se acende); e o confronto de Quaid com os dois, no restaurante, em cena que é a explosão de uma misturada de sentimentos reais e traições imaginárias.

Topher Grace, num registo de humor combalido, e Dennis Quaid, em "mise-en-scène" de auto-estima, são dois actores magníficos, sempre no tom justo, sempre a dizerem mais (ou menos) do que o que parecem dizer. De Paul Weitz, o realizador, não sabemos bem o que dizer; mas quem é capaz de virar assim uma história de "educação económica" numa história de "educação sentimental" (sempre a funcionar em contraponto) tem que possuir qualquer coisa que nos filmes anteriores estava escondida. A confirmar ou não, mas pouco importa: "Uma Boa Companhia" é um belo filme.

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