Cantando por trás das cortinas teatro de piratas

Pouco visto em Portugal, Ermanno Olmi é um realizador da velha guarda italiana, pertencente aquela geração que chegou ao cinema no pós-guerra, em plena vigência do neo-realismo. Nascido em 1931, realizou o primeiro filme (uma curta chamada "El Frayle") em 1953, o que faz dele, na actualidade, um dos realizadores há mais tempo em actividade. Com a sua primeira longa-metragem ("Il Tempo si é Fermato", de 1958), e depois com "Il Posto" e "I Fidanzati", no princípio da década de 60, afirmou-se como herdeiro e renovador do neo-realismo italiano, sem prejuízo da afirmação vincada de uma personalidade própria. Nos anos 70 ganhou a Palma de Ouro de Cannes com "A Árvore dos Tamancos" (1978), revisitação tardia e "campestre" de um neo-realismo depurado e de matriz porventura mais rosselliniana do que zavattiniana que se tornou no seu filme mais célebre. O último filme de Olmi estreado em Portugal (dos poucos que foram estreados) foi "A Lenda do Santo Bebedor" (1988), que trazia bem à vista (e bem no centro) a dimensão religiosa que nunca deixou de percorrer o seu cinema (por vezes de modo bem expresso: "E Venne un Uomo", de 1965, é um ensaio biográfico sobre o Papa João XXIII, com Rod Steiger). Não há, portanto, como não saudar a estreia portuguesa de "Cantando por Detrás das Cortinas" - Olmi é um tesouro bem guardado do cinema italiano, uma das mais ricas (e inesgotáveis) cinematografias europeias. E "Cantando por Detrás das Cortinas", mesmo que não seja um dos filmes mais felizes de Olmi, traz estampada toda a sua singularidade. Esqueçam, no entanto, tudo o que sabem sobre Olmi: não há aqui sombra de neo-realismo (pelo menos em sentido canónico). Pelo contrário, "Cantando por Detrás das Cortinas" é um filme artificioso e artificial, que assume desde o princípio - a abertura, no teatro - essa sua condição. Mais: é um elogio do romanesco, de universos aventurosos que podemos associar aos de alguma literatura "juvenil" (Emílio Salgari vem ao espírito), ancorado numa história de pirataria nos mares da China.

Só é pena que Olmi não faça, de facto, o filme que os seus magníficos vinte minutos iniciais parecem prometer. Essas cenas de abertura, conduzidas pelo velho pirata Bud Spencer ("chamavam-lhe o bulldozer...") arvorado em mestre de cerimónias (até faz lembrar o Peter Ustinov da "Lola Montes", mas com o decorrer do filme a lembrança perde algum sentido), são uma espécie de entrada na matéria em forma de pequeno ensaio sobre a pirataria e a sua mitologia - por entre coisas tão diversas como bordéis na China, excertos de filmes antigos, alusões históricas e até algum erotismo (um bailado/missa com uma sedutora "piratessa"). Não se parece com nada, é uma abertura em completa euforia musical, preenchida com evidente prazer da efabulação. Quando o filme arranca para a narrativa propriamente dita normaliza-se, e é pena - Olmi não consegue (ou não quer) manter a euforia do princípio e o resto do filme desenrola-se em registo francamente mais académico. Com algumas surpresas - alguns planos, alguns raccords - e uns quantos temperos inesperados (esta pirataria abre-se a metáforas para a "globalização" ou é impressão nossa?), mas bastante longe do entusiasmo anunciado. Ainda assim é um filme a espreitar, sobretudo por quem já não tenha paciência para o Mesmo.

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