O "hara-kiri" de sam bicke

Nunca ouviremos Sam Bicke dizer "You talkin" to me?" (mas podia: há momentos em que se olha ao espelho como se o reconhecimento vacilasse), mas não é preciso chegar a tanto para que a sua figura trágica evoque outro homem acossado (isto é, acossado dentro da sua própria cabeça) que mergulhou a fundo na paranóia e se viu como anjo vingador de uma América que, nos anos 70, perdera por completo a inocência. Eram os anos da Guerra do Vietname, de ameaça da Guerra Fria, de crises petrolíferas, de escândalos e corrupção política - eram os anos de Richard Nixon, que é o rosto de tudo isto, omnipresente em todos os televisores, todo o tempo, em "O Assassínio de Richard Nixon".

Niels Mueller, que assina aqui a sua primeira longa-metragem, co-escrita com Kevin Kennedy, dirá que não, que não há relação entre o protagonista do filme e Travis Bickle, a icónica personagem de "Taxi Driver" (1975), de Scorsese, porque "O Assassínio..." é "baseado numa história verídica", de um homem que, em 1974, tentou raptar um avião para fazê-lo colidir contra a Casa Branca. Pode-se até desbaratar o facto de o argumento de "Taxi Driver", escrito por Paul Schrader, ser ele próprio inspirado em notícias que diariamente apareciam na imprensa da altura; mas fica por explicar porque é que Mueller foi ao ponto de rebaptizar a personagem - que de Samuel Byck, nome verdadeiro do homem que planeou assassinar Nixon, passou a Sam Bicke - dando-lhe uma grafia que, obviamente, a aproxima do Bickle de "Taxi Driver".

Porventura, nada disto importa muito porque Sam Bicke, ao contrário de Travis Bickle, não personifica a paranóia dos anos 70 mas tem óbvias ressonâncias com a América contemporânea (já agora: admire-se a presciência de Mueller, que diz ter escrito e preparado o filme antes dos acontecimentos de 11 de Setembro). Não é só porque Richard Nixon é o nome mais citado, pela esquerda americana, na hora de procurar antecedentes a George W. Bush na presidência dos EUA (ambos Republicanos, com uma guerra para gerir e gerando uma enorme vaga de contestação, ambos acusados de mentir, ambos reeleitos), não é só porque alguém, nos anos 70, planeou um ataque que antecipa o 11 de Setembro; é também porque "O Assassínio de Richard Nixon" cumpre os requisitos mínimos de retrato de época sem se deixar encerrar nos "seventies": já se disse que o rosto de Nixon aparecerá como símbolo impressionista, soma de todos os medos da década e, para além disso, Mueller fecha as personagens em interiores.

Dito assim, pode parecer pretensioso, mas não é: Mueller é contido, não força nada - se há falta de subtileza aqui é no estilo formal próximo de Alexander Payne (colega de Mueller na escola de cinema da UCLA e um dos produtores do filme, a par de Leonardo DiCaprio e Alfonso Cuaron), sobretudo na delimitação espacial das personagens dentro do plano, quase sempre insistindo no vazio à volta delas (a cena em que Bicke é entrevistado para pedir um empréstimo bancário parece retirada de "As Confissões de Schmidt"). Mueller quer sobretudo acompanhar a evolução de uma personagem e a espiral do seu isolamento. Nesse sentido, tem um actor à altura, Sean Penn, num registo mais seco do que o habitual, sem os maneirismos que por vezes excedem na exteriorização do suposto "interior" das personagens; é um corpo quase imóvel, paralisado, pungente na sua nudez corcunda de "middle class American".

Mas Bicke não quer ser "middle class", não quer ter um Cadillac senão para impressionar a ex-mulher e reconquistar a família. Para acabar de vez com as comparações a "Taxi Driver": Bicke não é um excluído como Travis Bickle, simplesmente não quer ser incluído num sistema onde só vê corrupção e mentira. Como Bickle, tem uma missão espiritual (ainda que totalitária): purificar a América. Um dos "posters" de "Taxi Driver" propunha uma visão retorcida e ameaçadora do sonho americano: "On every street, in every city, there"s a nobody who dreams of being somebody". A tragédia de Bicke não é só ter falhado, não é só não ter conseguido ser "somebody". É também esta: seis meses após a tentativa de Bicke, Nixon viria a demitir-se, na sequência do escândalo de Watergate. Não houve assassínio, houve "hara-kiri".

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