36 anti-corrupção polar express

O policial, por diminutivo o "polar", é um dos géneros clássicos da cinematografia francesa. E "36 Anti-Corrupção" até faz uma vénia à tradição, citando (no título original) o nome de um relativamente célebre filme de Henri-Georges Clouzot, "Quai des Orfèvres", de 1947. Ao chamar ao seu filme "36 Quai des Orfèvres" percebe-se a vénia mas talvez se perceba mais qualquer coisa ao nível da intenção do realizador Olivier Marchal: acrescentando o número da porta, e assim precisando a morada do quartel-general da polícia parisiense, Marchal parece reclamar para o seu filme um pouco mais de exactidão e rigor. Pelo que podemos saber dele (de Marchal), não parece pretensão injustificada: foi polícia durante muitos anos, depois actor, e finalmente argumentista e realizador de filmes policiais (claro).

"36 Anti-Corrupção" é a sua segunda longa-metragem, e afigura-se muito razoável. Descreve em abundância os meandros policiais, remetendo os marginais para posições secundárias: o coração do filme é o confronto entre um polícia bom (Daniel Auteuil) e um polícia mau (Gérard Depardieu), numa história de corrupção e pequenas ou grandes trafulhices que envolvem rivalidades inter-departamentais à mistura com interesses, vaidades e ressentimentos pessoais (Auteuil e Depardieu foram em tempos, parece, os melhores amigos do mundo). Também não é um filme parco de meios nem desajeitado no seu uso: a sequência mais espectacular, a tentativa de captura de um "gang" de assaltantes, é convincente e bem oleada.

Essa plausibilidade realista, tanto mais que é servida com alguma secura e sem demasiados floreados, é um ponto a favor do filme. Que arrisca mais um pouco além disso, mesmo que só parcialmente ganhe a aposta. O confronto entre Auteuil e Depardieu, o íntegro (pouco ortodoxo, mas íntegro) e o corrupto (inteligente, mas corrupto), sofre com a excessiva "iconização" das personagens, demasiado coladas a estereótipos que nem sempre deixam ver para lá de si próprios. Marchal, até para aludir à relação passada entre eles, enquadra-os, nalgumas cenas, nos respectivos "backgrounds" familiares - mulheres e, no caso de Auteil, filha - mas por alguma razão essas cenas em vez de aliviarem o estereótipo excitam-no (e isto é mais verdade no caso de Auteuil, incapaz de trazer uma zona de verdadeira sombra ao recorte obstinadamente impoluto da sua personagem; Depardieu, naquele registo lento e cansado em que se especializou, parece mais tridimensional). Mas, por outro lado (e é outro ponto), a aura que Marchal tenta fazer desprender das personagens (qualquer coisa como uma "maldição de se ser polícia") ecoa melhor no registo nocturno e profundamente pessimista em que faz desenrolar a acção. Desenhado como tragédia (em sentido clássico), "36 Anti-Corrupção" investe a fundo no fatalismo, espécie de manto a cobrir o filme. Aliás, o braço direito do fatalismo (que é o acaso, como sabemos) parece ser directamente convocado para resolver o último nó da intriga, mas depois há uma breve explicação (afinal não foi bem um acaso) que corta um pouco o entusiasmo. Ainda assim, e com os desequilíbrios e tiros ao lado, "36 Anti-Corrupção" consegue ser quase sempre interessante.

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