O filme fantasma

Entenda-se isto também como um SOS: como é possível que este filme assombradamente belo esteja em segunda e última semana com uma única sessão diária?

Quando passados 45 minutos de filme enfim se esboça o que aparenta poder ser um diálogo, alguém diz: "Sabe que este cinema está assombrado? Está assombrado. Fantasmas".

"Fantasmas"/cinema - não é também de algum modo quase sempre assim? Só que, senão algumas salas, por certo alguns filmes têm maiores assombrações que outros. Naquela sala, assombroso mas fantasma de um tempo ido e de um género, o filme chinês de capa e espada, o "wu xiao pian", continua a passar, em solidão, o esplendoroso Dragon Gate Inn (1966), com o qual o mestre King Hu, apartando-se de Hong Kong e da produção dos Shaw Brothers e aportando a Taiwan, renovou o género.

Mas filme-fantasma tornou-se também este Goodbye Dragon Inn. Entenda-se isto também como um SOS: como é possível que este filme assombradamente belo esteja em segunda e última semana com uma única sessão diária?

Quando agora o fui rever, eram as dimensões de salas a diferença entre aquela em que estávamos e a que vimos na tela, que a desolação era de ordem equiparável, três espectadores apenas que éramos. E, no entanto, dias antes, tinha eu gramado com pipocas até, vendo o mais recente "wu xiao pian" revisionista do "export man" Zhang Yimou, O Segredo dos Punhais Voadores, nova e bocejante tentativa de explorar o filão na senda do sucesso de O Tigre e o Dragão de Ang Lee - e "revisionista" nos mesmos termos em que se usou dizer de tantos "western" pós-clássicos, embora a expressão ganhe no contexto uma particular ironia dado a conotação política que seitas pró-chinesas fizeram do termo.

Os sinais de diversidade no panorama da exibição em Portugal, sendo mais insistentes do que há alguns anos, estão longe de ter um sentido unívoco e de consolidação. Sucede aliás, de resto, em certos discursos críticos, que até supomos dos mais sensíveis e esclarecidos, que o elogio da diversidade é de facto substancialmente um exercício retórico, que na prática são antes reiteradas as formatações narrativas e figurativas - e sublinho mesmo figurativas, que a questão não me parece de todo despicienda.

Para nos ficarmos por Taiwan, a indiferença crítica e o consequente insucesso comercial do Tempo para Viver e Tempo para Morrer, impediu de facto posteriores estreias de obras do mais importante dos cineastas, Hou Hsiao-Hsien. Um prémio em Cannes possibilitou a estreia do magnífico Yi Yi de Edward Yang; quando anos antes, apresentei numa Semana dos Novos Realizadores do Fantasporto o esplêndido A Brighter Summer Day, apenas um crítico, José Vaz Pereira, o notou. De Tsai Ming-Liang, suporia que O Rio o tinha pelo menos estabelecido como "cineasta de culto". Quando em 2000 num ciclo na Culturgest programei Vive l"Amour (Leão de Ouro de Veneza, aliás) a cobertura crítica e a afluência pública foram as melhores. Mas em 2001 verifiquei uma situação equívoca: Tsai Ming-Liang deveria então ter vindo a Lisboa por ocasião da retrospectiva que o Festival de Cinema Gay e Lésbico lhe dedicou mas, poucos dias depois do 11 de Setembro, ficou retido em Toronto; o incómodo foi constatar que, por força de uma lógica de comunidade, era óbvio que o público desse festival não reconhecia nos seus filmes as imagens que esperava num tal evento - e no entanto, ao longo de nove filmes em 15 anos, a relação de Tsai Ming-Liang e do seu actor e companheiro Lee Kang-Sheng (é ele, o projeccionista, o mostrador das sombras, que diz "Sabe que este cinema está assombrado?") é seguramente uma das histórias de amor da arte cinematográfica.

"Hélas!", perante Goodbye Dragon Inn e, em contraponto, o presente filão de re-exploração do "wu xiao", a questão até é mais lata. Num filme de memória cinéfila como The Last Picture Show de Peter Bogdanovich a relação do espectador com a obra constrói-se também no reconhecimento dos filmes projectados na sala que irá desaparecer, como Red River de Howard Hawks. Para além de todas as diferenças culturais, e de se não ter crescido com filmes como Dragon Gate Inn - e esse é um aspecto crucial -, como é possível sequer reconhecê-lo no seu estatuto de grande obra num país onde King Hu é um desconhecido? A retrospectiva do próximo Festival de Veneza ser-lhe-á dedicada; por cá, que sessões com filmes seus já houve na Cinemateca?

Os exercícios nostálgicos, demagogias do tipo Cinema Paraíso, reciclagens e saques, esses sim são objectos de sucesso e legitimação - o que me faz recordar ter pendente um texto, agora que os dois volumes de Kill Bill estão editados em dvd, com um elenco da devedeteca usada por Quentin Tarantino nesse filme, de Tokyo Drifter de Seijun Suzuki a Ai nu/Intimates Confessions of a Chinese Courtesan de Chor Yuen, passando nomeadamente por filmes de King Hu, o que de resto o próprio Tarantino não escamoteia.

Acontece que Goodbye Dragon Inn é o anti-Cinema Paraíso. Se todo o ecrã é também potencialmente fantasma de desejos, a solidão de Dragon Gate Inn naquela grande sala não assinala apenas um passado, mas o esvaziamento desse desejo, disperso nos engates masculinos furtivos. Desejos húmidos, é caso para dizer com rara propriedade, neste filme pontuado pela chuva. Mas anti-Cinema Paraíso porque Goodbye Dragon Inn não é um filme de recuperação nostálgica mas de perda e mesmo perdição, assombração de um desejo, correntes intersticiais, no tempo que passa, como passou nas faces daqueles espectadores mais velhos que a certa altura, se estivermos atentos, podemos reconhecer serem os mesmos que se vêem, fantasmas de um seu outro tempo, actores de Dragon Gate Inn, Shiu Chu e Miao Ten.

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