Fantasmas na casa do cinema

A Tsai Ming-liang acontece-lhe sonhar ainda com os cinemas da sua infância na Malásia, essas salas imensas que congregavam famílias inteiras das classes populares em torno de grandes filmes épicos, e onde era levado pelo avô. Eram outros, os tempos: hoje, essas salas fecharam as portas ou foram destruídas.

Digam adeus com "Adeus, Dragon Inn", sexto filme do cineasta de Taiwan, crónica de vários desaparecimentos - do passado glorioso dos filmes de artes marciais, das velhas salas de cinema que abrigaram uma certa experiência de cinefilia (que, para uma ou duas gerações, abrigaram esses "filmes que nos olharam na infância", nas palavras do crítico francês Serge Daney), de um sentido comunitário que se perdeu.

"Adeus, Dragon Inn" é o filme de um cine-filho, de alguém que convoca as memórias gratas do cinema com que cresceu, de resto como a anterior realização de Ming-liang, "Et là-bas quelle heure est-il?" (2001), onde, na diferença de fusos horários entre Paris e Taipei, prestava tributo a François Truffaut, resgatando o actor-fétiche do cineasta da Nouvelle Vague, Jean-Pierre Léaud. Podia chamar-se "A Última Sessão", para citar o título do filme de Peter Bogdanovich que também assinalava o fim de um tempo (o do cinema clássico americano): em pleno temporal, um jovem japonês refugia-se num velho cinema taiwanês, o Fu-Ho Grand Theater, que nessa mesma noite irá encerrar definitivamente as portas. Espreitando através das cortinas, o filme em exibição é "Dragon Inn", um clássico das artes marciais e êxito retumbante em 1966.

Tanto o cinema Fu-Ho como o filme "Dragon Inn" existem mesmo - ou existiram, porque não é certo que aquela sala não tenha já desaparecido. Tsai Ming-liang descobriu o "décor" para o seu filme quando estava a rodar o anterior "Et là-bas quelle heure est-il?", para o qual precisava de algumas cenas num sala de cinema. O Fu-Ho, num bairro periférico de Yung-Ho, Taiwan, tinha uma familiaridade com os cinemas da sua infância, mas três meses depois de terminar as filmagens a sala fechou. "Algumas pessoas da comunidade "gay" tentaram salvá-lo, e isso comoveu-me", contou Tsai Ming-liang. "Apesar de estar em declínio, de ter perdido o seu brilho e de ter caído no esquecimento, o cinema continua a ter uma vida própria e a acolher os excluídos da sociedade..." Resolveu alugar o Fu-Ho para rodar "Adeus, Dragon Inn" e, assim, testemunhar o seu crepúsculo - é a vertente documental do filme de Tsai Ming-liang.

Quanto a "Dragon Inn", viu-o aos 11 anos, e nenhum outro filme de artes marciais, entre "as centenas" de que foi espectador, o marcou tanto como esse. Contou ele que, por regra, em todos os outros, as personagens elevavam-se no ar, voavam pelos telhados e andavam nas paredes. O realizador de "Dragon Inn", King Hu - que foi uma referência para os cineastas da nova vaga de Hong Kong, entre eles Ann Hui ou Wong Kar-wai - era o único que permitia que o seu herói caminhasse em direcção ao horizonte, dissipando-se na solidão da paisagem. Como num "western" - e, para todos os efeitos, o filme de artes marciais está para o cinema asiático como o "western" está para o cinema americano (questões de inscrição da História, de construção identitária e comunitária, etc).

Assombrações.

Não admira, então, que "Adeus, Dragon Inn" seja um objecto nostálgico, atravessado por uma aguda melancolia: mais de três décadas depois, "Dragon Inn" reacende-se numa sala de cinema, mas esta está praticamente vazia.


Mas se "Adeus, Dragon Inn" é um tributo, a singularidade de Ming-liang não permite que se fique por um qualquer "cinema paraíso". E, antes que o filme faça figura de caso atípico na obra de um cineasta que diz preferir "filmar o meu sentimento da vida contemporânea", refira-se que este se manifesta no labirinto de solidões que é o interior do Fu-Ho - e a matriz do cinema de Tsai Ming-liang.

Nesta coreografia lenta de um punhado de personagens - o seu vaivém dentro e fora da sala, as longas digressões por corredores e escadas, o mutismo (interrompido, apenas, por dois breves diálogos extra-"Dragon Inn"), os "gags" (há um burlesco contido em Ming-liang), as falhadas tentativas de contacto -, o circuito fechado de um cinema afigura-se como um microcosmos social onde o sentido de comunidade se perdeu e os indivíduos foram abandonados a uma irremediável solidão.

Duas figuras vão dar corpo a essa errância solitária: o jovem japonês que muda constantemente de lugar e que veio manifestamente à procura de outros corpos (o velho cinema é também um local de engate "gay"); e a empregada coxa que vagueia pelo edifício, fazendo ressoar a cadência da sua bota ortopédica (o espaço, a arquitectura neste filme é também uma construção sonora), com o suspense ameaçador de um filme de terror (mais memórias: num dos cinemas que Ming-liang frequentava em criança, o homem da bilheteira era coxo e metia medo...).

São as personagens mais pungentes porque, na sua demanda, só descobrem ausência: os corpos podem roçar no aperto de uma sala de arrumações, mas nunca de encontram, a empregada coxa procura o projeccionista (Lee Kang-sheng, o rosto do cinema de Tsai Ming-liang), mas depara-se apenas com vestígios da sua passagem (o fumo de um cigarro elevando-se no ar). Nunca se cruzam. Serão, talvez, fantasmas.

É possível porque "Adeus, Dragon Inn" é um filme assombrado. Não é só porque o jovem japonês começa a ver, entre os espectadores da sala, os actores de "Dragon Inn", agora envelhecidos (são mesmo eles, herói e vilão, Shih Chun e Miao Tien, que se reencontram na entrada do cinema), ou porque alguém pergunta "Sabe que este lugar é assombrado?". Não era preciso tanto, porque se explicita demasiado o que era evidente desde o início, no vazio dos planos - de resto, os filmes de Tsai Ming-liang têm sempre uma dimensão fantasmática.

"Adeus, Dragon Inn" é um filme assombrado porque nos devolve o contracampo da nossa condição de espectador. Condição propícia a visões, ao sortilégio, em que procuramos no ecrã a projecção dos nossos fantasmas (voltando a citar Daney, o cinema é o que está "entre as coisas"; um fantasma também). Condição, enfim, em que o desejo de identificação se confunde, por vezes, com a possessão - numa das mais belas sequências de "Adeus, Dragon Inn", depois de a empregada coxa quase entrar no ecrã (depois de quase beijá-lo), o seu rosto, exposto à projecção do filme, tornar-se-á uma superfície de pontilhismo luminoso.

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