As pessoas normais não têm nada de especial

Tendo como estrutura uma variação sobre o "road movie", o filme de Alexandre Payne arrisca uma viagem sobre a solidão e angústia com o tom de uma comédia de costumes: dois falhados, um escritor de um livro que ninguém quer publicar e um actor de televisão e de "spots" publicitários, em permanente crise de carreira e à beira de um casamento de conveniência, fazem uma semana de "despedida de solteiro", percorrendo o circuito californiano dos vinhos. Mais do que uma prova de vinhos e uma sequência de aventuras sexuais, mais ou menos inconsequentes, "Sideways" encena uma busca desesperada mas serena de uma identidade em perda.

No horizonte longínquo, existem resquícios de "soap opera", com ecos filtrados do famigerado "Falcon Crest"; como referência próxima, aparece o mundo cristalizado de Eric Rohmer, em cruzamento entre "comédias e provérbios" e as evidências de um "conto moral". Pelo caminho, entre os vinhedos e o prazer da vida como degustação, ficam reminiscências do "Conto de Outono", aproximando o território vinícola de uma metáfora para a vida em fuga. Alexander Payne é um caso curioso de um cineasta, profundamente americano, interrogando, em qualquer ponta de demagogia, o sistema, como em "Election" (1999) ou concentrando-se no processo de envelhecimento do indivíduo, num mundo em colapso lento de valores e de alternativas, como em "About Schmidt" (2004). "Sideways" rima com este último, na medida em que opta por um tom ligeiro de crónica, recusando facilidades cómicas ou armadilhas melodramáticas. "About Schmidt" possuia um incontornável cariz de identificação pela presença da estrela, Jack Nicholson. "Sideways" gira em torno de duas "non entities", dois actores sólidos e versáteis, mas sem carga adicional de representação extra-ficcional: Paul Giamatti mantém as suas características de secundário, investido de funções protagonistas, mas reduzido sempre a uma insignificância de pequena personagem perdida num mundo que não entende; Thomas Hayden Church afina por semelhante diapasão: um "low profile" que só se rompe quando entra numa comicidade involuntária. Todos os jogos do "acaso e do amor" redundam em impossibilidade e em desastre, sem o "panache" do "marivaudage" rohmeriano. Não existe elegância, nem sofisticação, apenas uma estratégia de converter o desejo à hipótese da rejeição: não há Pierrots nem Arlequins nesta Califórnia de frutos maduros e personagens imaturas e falhadas. Também Virginia Madsen, outrora uma mulher fatal, em "The Hot Spot" (1990) de Dennis Hopper, por exemplo, se reveste agora de uma dolorida perda de identidade e de esperança, numa extraordinária personificação de mulher vulgar, iluminada por uma minúscula centelha de amor. Mais do que nos filmes anteriores, Payne insiste na apresentação da fealdade e da crueza, sem que ela constitua programa: a sequência do marido traído, nu, a balançar as partes pudibundas atrás de um carro que nunca vai alcançar, funciona como imagem de marca de um "realismo" que simplesmente existe, sem querer meter-se pelos olhos dentro. Enquanto em Rohmer as adivinhas culturais operam enquanto niveladores de sentido, em Payne reduzem-se a relações de classe e de estatuto social. Discutir um bom Pinot não está a par de discursos sobre Schubert ou Picasso; a "diva" é uma criada sem cultura nem perspectivas; o protagonista vive para o seu livro, quase só como hipótese de escape a uma apagada e vil tristeza. O facto de abandonar o seu território, a sua Omaha natal, leva Payne a uma concentração maior na leitura complexa das pequenas misérias humanas: o amor partilhado pelo vinho leva a uma poetização da vida, à possibilidade de um breve fogacho de felicidade, num universo, de que a felicidade está ausente. Como o cinema de Rohmer, o de Payne constitui-se de ínfimos e saborosos pormenores, o gosto do vinho ou o olhar sobre a paisagem, um grande plano sobre um rosto qualquer ou um plano de conjunto sobre a mole humana, indistinta e única, em simultâneo. O par masculino invoca o burlesco, nas suas incongruências, mas tudo se desfaz (ou refaz) num esgar que dá conta da impossibilidade da economia sentimental de uma imitação de vida, em que o cinema tem uma função, mas em que o desprazer do corpo comanda o jogo.

Sugerir correcção
Comentar