Alfred C. Kinsey abriu caminho à revolução sexual?

Onde alguns vêm imoralidade e amoralidade, outros vêm trabalho de cientista. Mas há um ponto de acordo:ele mudou a maneira como os americanos (e parte do mundo ocidental)olham para o sexo.

92 por cento dos homens e 62 por cento das mulheres masturbam-se, 10 por cento deles e oito por cento delas são exclusivamente homossexuais durante um período de três anos. Números, números e mais números. Alfred C. Kinsey coleccionou estatísticas, pôs a América a falar de sexo e procurou promover a tolerância. Ou será que retirou espiritualidade ao sexo.

Quase cinquenta anos depois de morrer, Alfred C. Kinsey ainda divide, como aconteceu em vida. Onde alguns vêm imoralidade e amoralidade, outros vêm apenas o trabalho de um cientista; mas há um ponto em que estão de acordo: a sua investigação mudou a maneira como os norte-americanos (e boa parte do mundo ocidental) olham para o comportamento sexual. Mudou-a para o melhor e para o pior, conforme os pontos de vista, mas em definitivo abriu a porta a que todos falassem sobre o assunto.

James H. Jones, o prémio Pulitzer que em 1997 publicou a biografia "Alfred C. Kinsey: A Public and Private Life", descreve nela toda uma série de práticas sexuais "invulgares" (procurando usar uma palavra sem juízo de valor) a que ele se entregava, mas defende acima de tudo que o investigador era um cientista sério que ambicionava, através da estatística, "elevar o comportamento à normalidade", criando aquilo que seria uma espécie de "normalidade dos números".

Numa entrevista aquando do lançamento do seu livro nos Estados Unidos, Jones explicou: "A grande objecção dele [Kinsey] às obras escritas sobre sexo naquela época era que estavam manchadas de moralismo. E por manchadas ele considera que proibiam. Passavam imenso tempo a fazer juízos de valor sobre o que as pessoas deviam fazer. O que Kinsey quer, em vez disso, é uma abordagem da sexualidade que em primeiro lugar descubra o que as pessoas realmente fazem".

Uma das perguntas que se fazem constantemente sobre Kinsey é de que forma é que ele, nascido em 1894, se tornou obcecado por sexo e fez disso o objecto principal do seu estudo, quando era por formação entomologista e zoólogo, trabalhando nesse campo na Universidade de Indiana em Bloomington. A biografia escrita por Jones não esclarece o mistério, mas sublinha que o interesse do cientista pelo tema-tabu surgiu muito antes da fundação, em 1947, do Instituto Kinsey para Investigação sobre Sexo, naquela universidade.

Kinsey foi um estudante tímido, sem experiência com mulheres, com uma primeira namorada com quem casou, Clara, e com uma vida sexual conjugal um tanto difícil a princípio (Jones descreve esse período como "uma história de horror vitoriana, porque nenhum deles tinha experiência sexual, e tiveram muita dificuldade em consumar o casamento"). O biógrafo sugere que o seu interesse, nos anos 20 e 30, por livros relacionados com sexologia e casamento tinha por objectivo "tornar-se um amante mais engenhoso e mais bem sucedido com a mulher".

A partir desse momento, Alfred C. Kinsey tornou-se um coleccionador, de experiências e de materiais, um pioneiro, na forma e no pormenor das entrevistas que ele e a equipa realizavam e, também, na opinião de admiradores e detractores, um ideólogo.

Kinsey era um adorador de factos, factos e mais factos e isso, num primeiro olhar, pode ser visto como um respeito absoluto pelo mandamento da objectividade da ciência. Mas Jones assinala: "Quando ele reúne os dados, penso haver algo que molda tudo aquilo que ele faz, e que é a paixão para que a história surja de maneira a promover a tolerância. Na minha opinião, é impossível ler as suas obras [os relatórios sobre sexualidade masculina (1948) e feminina (1953)] sem sentir instantaneamente que se está na presença de um reformador, de uma pessoa que tem uma mensagem que acompanha os dados". Esta mensagem, na opinião de Jones, é o desejo de "mudar a forma como as pessoas vêm o comportamento sexual, o desejo de criar uma ética de tolerância para com diferentes tipos de comportamento".

Do outro lado, há os que pensam que o olhar de Kinsey sobre o sexo, baseado em estatísticas e mais estatísticas, contaminou a forma desprovida de alma como boa parte da sociedade olha hoje para o envolvimento sexual e, além disso, lançou no caminho errado o estudo da sexualidade humana.

O choque entre os dois pontos de vista permanece irreconciliável: para uns, há só frieza e insensibilidade onde devia haver espiritualidade; para outros, há a promoção da tolerância como arma de combate a todos os preconceitos.

O ponto comum é o de que Alfred C. Kinsey foi, no limite, o homem que inventou a investigação sobre sexo. Os resultados dos seus dois mega-estudos (ainda hoje estudados), a divulgação que lhes foi dada, representariam, até, uma espécie de ponto zero da revolução sexual. O último volume, sobre o comportamento sexual da mulher, publicado em 1953, valeu-lhe o título de "homem do ano" da revista "Time", mas acabou por ser também a sua queda em desgraça numa América tomada pela "caça às bruxas" anti-comunista. O investigador foi colocado sob suspeita: podia ser um agente comunista com a missão de sabotar a moral americana.

Kinsey morreu em 1956. Foi casado com Clara durante 35 anos. Até ao fim coleccionou experiências, suas, dela, dos colaboradores e colaboradoras, de anónimos. Experiências de todo o género, aos milhares: milhares de números, milhares de dados, milhares de fotos, quilómetros de filmes, alguns deles feitos mesmo no sótão de sua casa.

Conta James Jones: "Consegue convencer alguns indivíduos a irem a sua casa e, a bem da ciência, que se envolvam em vários actos sexuais que são filmados no sótão. (...) Uma das imagens que tenho de Clara e que é realmente muito doce, é a de que, com as pessoas no sótão envolvidas em actos sexuais, ela chega, com leite e bolinhos e toalhas para se secarem e refrescarem. Bebem o leite, comem os bolinhos, e começam outra vez com as suas experiências sobre comportamento".

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