O conto do ovo de Soderbergh

Steven Soderbergh permanece como um nome fundamental no panorama do cinema americano contemporâneo, algures entre as margens e o "mainstream". Tornou-se conhecido no âmbito do cinema independente com "Sexo, Mentiras e Vídeo" (1989), abrindo novas possibilidades representativas a uma narrativa fragmentada. Depois experimentou com as impossibilidades de um "biopic", construído a partir das novelas, com o frágil (mas interessante) "Kafka" (1991), para explodir na bilheteira, no ano de 2000, com dois veículos triunfadores, que a indústria incensou e a Academia distinguiu: "Traffic" reunia a um "cast" de luxo, um olhar pessoal e complexo sobre o mundo da droga e sobre o espectáculo da sua exposição; "Erin Brockovich" permitia a Julia Roberts a obtenção do Óscar de Melhor Actriz e investia no compromisso das grandes causas, sempre dentro e fora do sistema.

Já antes, oscilara entre um projecto mais experimental, com "Schizopolis" (1996), que protagonizava, e uma releitura do "thriller" em "Out of Sight" (1998), com George Clooney e Jennifer Lopez, em posição estelar. Em ambos os casos desconstruía os processos narrativos e experimentava sobre a montagem e sobre a ordem sequencial. Com "The Limey/O Falcão Inglês" (1999), sobretudo recuperado após o sucesso comercial de "Traffic" e "Erin Brockovich", ia mais longe, construindo um "puzzle" de situações, numa rarefacção da violência, que analisava, por fora, os próprios processos de construção de uma narrativa, dada por indícios e por estilhaços.

Este posicionamento híbrido entre o projecto pessoal e a encomenda executada com originalidade de métodos e de selecção de efeitos, concedeu-lhe um lugar invejável na indústria: realizador de confiança, capaz de vender bem um produto, e autor, reconhecível pelas elipses e pelo tom de divertimento "desarrumado" e quase caótico que imprimia a todos os seus filmes.

A escolha para um ambicioso projecto, como "Ocean's Eleven" (2001), "remake" de uma velha película de Sinatra e do seu "rat pack", radica no reconhecimento deste estatuto misto do cineasta: as aventuras de um "gang" que assalta o cofre-forte de um casino ganham foros de grande divertimento cinematográfico; as estrelas cruzam-se com as personagens que encarnam (Shirley MacLaine aparecia em "cameo", vinda do filme anterior); tudo fluia ao sabor de uma espécie de inconsciente controlado.

O êxito de bilheteira justifica, pois, a sequela, com semelhante desfile de estrelas: reincidem George Clooney, Brad Pitt, Matt Damon, Júlia Roberts ou Andy Garcia; aparece, em "cameo" de si próprio, Bruce Willis. Três anos depois, o "gang" vê-se perseguido e obrigado a novas aventuras para repor o "desfalque" do filme anterior. No entanto, aquilo que em "Ocean's Eleven" era ritmo trepidante atinge, em "Ocean's Twelve", uma quase letárgica lentidão. Quem espera coerência, desiluda-se: o filme aposta no desconchavo, no aleatório, na total desconexão das estrelas em relação às personagens, como se a auto-reflexividade de "Full Frontal" (2002), um dos seus projectos intervalares, tivesse deixado lastro indelével no mundo conceptual "soderberghiano". Os primeiros vinte minutos consistem numa quase penosa perseguição individual aos "onze", por parte de um Andy Garcia, em pose de "dandy", concedendo quinze dias para o ajuste das contas. Pequenos segmentos narrativos dispersam a acção, antes do arranque, já na Europa, entre Amsterdão, o Norte da Itália e um Portugal de estereotipado bilhete-postal, onde supostamente está exilado "o maior ladrão de todos os tempos" (revelado no final com o rosto de Albert Finney), pai da polícia de Catherine Zeta-Jones, amante de Brad Pitt, um dos "doze". Confuso? Claro que sim, mas muito divertido no jogo de "mostra-esconde" que é todo o filme.

julia vs. julia. O grande roubo começa por ser o de um documento raro, para o qual se baixam as estruturas de uma casa, em Amesterdão, para se verificar que alguém se antecipou: o Barão François Toulour (Vincent Cassel, em personagem a lembrar as sofisticações hitchockianas de "Ladrão de Casaca"), o denunciante dos "doze", por inveja do seu estatuto de "melhores gatunos". Neste registo de total absurdo, prosseguimos a caminho do "ovo de Colombo" do filme, ou melhor do ovo de Fabergé, de que existem várias réplicas, roubadas, ou não em tempo real e em "flash-back" pelos diferentes rivais, sem que se entendam muito bem os objectivos. Nem interessa...

A partir do momento em que entramos no "conto do ovo", somos engolidos pela ilógica do argumento e entramos na pluralidade de pontos de vista, relativizando sempre as certezas: Catherine Zeta-Jones é substituída à frente do caso por uma nova inspectora, que afinal é a mãe da personagem estapafúrdia e complexada de Matt Damon, um dos "doze". Estamos instalados no reino do disparate e é isso que constitui imagem de marca: Soderbergh goza consigo próprio e com os rodriguinhos da ficção policial.

E chegamos, neste contexto, ao momento central: entra em cena o 12º elemento da quadrilha, Tess (Julia Roberts), mulher de Danny Ocean (Clooney), que se parece com... Júlia Roberts, usando uma almofada para sublinhar a gravidez e encontrando-se com Bruce Willis (um "cameo" desmascara o outro), com o qual visita a exposição e rouba o ovo (falso), substituindo-o por um holograma.

De filme de aventuras, passamos, pois, ao registo da farsa mais descabelada, com reviravoltas sucessivas e constantes efeitos de "trompe l'oeil". O ovo da coroação de Fabergé não passa de um MacGuffin (um desinteressante pretexto) e eis-nos, de novo, em território de mestre Alfred Hitchcock, que paira como sombra cinzenta por sobre todo o filme. Mas Steven Soderbergh não resiste a inscrever no divertimento a sua diferença manipuladora (filtros de cores, uma montagem desvairada e uma sequência coreográfica, em que Vincent Cassel ilude em saltos incongruentes o sistema de raios Laser). Parece, por vezes um filme de John Woo, mas possui a inventividade exposta e auto-caricatural do melhor Soderbergh.

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