Johnny Pan

Instalou-se a confusão no último Festival de Veneza: demasiadas estrelas e débil organização para sustentar o frenesim. Por exemplo, no dia em que chegou Johnny Depp... Como se não bastasse a multidão de fãs à frente do hotel, uma suposta ameaça de bomba atrasou a estrela durante hora e meia, enquanto os mergulhadores da polícia italiana inspeccionavam os canais do Lido. Por esta altura já decorria a apresentação mundial de "Finding Neverland"/ "À Procura da Terra do Nunca", sobre o criador de "Peter Pan", J. M. Barrie. Eram 2h30 da madrugada. O horário inicialmente marcado para a sessão - 24h - já era suficientemente tarde para alguns, mas 2h30 da madrugada...

E foi então que apareceu Depp, em tempos um provocador, em tempos proprietário de uma discoteca de Los Angeles, o famigerado The Viper Room. Com 41 anos, ar juvenil, estava fresco que nem uma alface no meio da confusão desencadeada pela sua chegada. "Não sei o que se está a passar", explicou aos jornalistas que esperavam por ele 90 minutos na sala de imprensa. "Dizem-me que tenho de fazer isto e aquilo e eu estou aqui a fazer isto e aquilo".

É claro que os tempos mudaram para Depp, que se levanta bastante mais cedo nos dias que correm para cuidar de Lily-Rose, cinco anos, e de Jack, dois anos - os filhos que tem da namorada francesa, a cantora e actriz Vanessa Paradis. Até usa pulseiras feitas pelos miúdos: a de Lilly com tirinhas de plástico, a de Jack de pano com rabiscos a cores. "Isto é uma coisinha que o meu rapaz desenhou", sorri durante a entrevista. "Ele tem jeito", acrescenta.

"Não tenho grandes recordações da minha vida antes de ter sido pai", prossegue. "E ser pai ajudou-me imenso ao longo de 'À Procura da Terra do Nunca', porque tive de passar 12 horas por dia com um bando de miúdos. Aprendi bastante ao observar os [quatro] rapazes, a fazer as coisas que eles queriam fazer, a fazê-los rir. Fez com que eu visse tudo outra vez com outros olhos. Foi uma benção."

Johnny e os sinistros contos de fadas

Na verdade, "À Procura da Terra do Nunca" é um filme mais sentimental do que muitos dos bizarros filmes de Depp (nem é preciso chegar a "Fear and Loathing in Las Vegas", baseado no romance do seu herói e amigo Hunter S. Thompson, em que Depp contracenou com outro amante da noite, Benicio del Toro; pense-se, por exemplo, no papel do actor na obra de Tim Burton, em "Eduardo Mãos de Tesoura", "Ed Wood", "Sleepy Hollow").

Mas embora tenha vendido o "nightclub" e abrandado o ritmo de vida, em termos de interpretação Depp não abandonou os antigos hábitos. Aliás, em breve vai ser parceiro de Del Toro na estreia deste na realização, "The Rum Diaries", baseado em outro romance de Thompson. No início deste ano fez o papel de um debochado do século XVII, em "The Libertine", e voltou a Burton para a adaptação de "Charlie and the Chocolate Factory", o clássico de um "clássico" da literatura infantil, Roald Dahl (1916-1990). Depp e Burton filmaram simultaneamente uma animação, "The Corpse Bride", baseado num conto russo do século XIX, onde a namorada de Burton, Helena Bonham-Carter faz de cadáver e Depp de noivo. "Vai ser magnífico, emocionante. É muito do género Tim Burton", diz Depp. Resumindo: trabalhar com Burton é prazer no estado puro. "Conhecemo-nos há 15 anos, fazer um filme é como regressar a casa. Desenvolvemos uma linguagem comum, ele não tem que me dizer muito para eu o compreender. Eu também não tenho que dizer muito e ele compreende-me. Adoro, é uma benção."

Depp consegue detectar que o seu interesse por contos de fadas data, precisamente, da altura em que começou a trabalhar com Burton. "Quando fiz 'Eduardo Mãos de Tesoura', li um livro de contos de fadas e gostei particularmente de um deles, 'Struwwelpeter'. Era uma história sinistra alemã, e a personagem tinha semelhanças com 'Eduardo Mãos de Tesoura', longas unhas e cabelo despenteado". Tal como Burton, Depp é admirador da escrita de Roald Dahl. "O Dahl tem também alguma tralha que não quereríamos propriamente ler aos nossos filhos. Mesmo se 'Charlie and the Chocolate Factory' é dirigido aos pequenos, tem algumas mensagens subtis", diz, soltando uma gargalhada.

A sua apetência por contos de fada góticos, sinistros pode ser comprovada no seu único "blockbuster" hollywoodiano, "O Pirata das Caraíbas". Algo desse gosto bizarro até vem à tona em "À Procura da Terra do Nunca". Não por causa da fábula "Peter Pan", mas pela história trágica de J. M. Barrie (1860-1937), que, na sua reprimida existência, não deixa de ser uma reminiscência de... Eduardo Mãos de Tesoura.

"É um tema fascinante o de saber o que é que a sociedade considera normal ou anormal e quem decide e porquê", diz Depp sobre a sua afinidade por personagens de inadaptados. O que o atraiu no escritor escocês foi a constatação de que "Peter Pan" fora escrito por alguém problemático. "Tive muita sorte em ter podido adquirir um par de biografias interessantes sobre J. M. Barrie", conta. "Uma em especial foi-me muito útil, a de Andrew Birkin, 'J. M. Barrie and the Lost Boys'. No seu testamento, Barrie deixou os direitos de 'Peter Pan' ao Children's Hospital, na Great Ormond Street, e até hoje o hospital recebe todos os dividendos desta história. É assombroso que ele o tenha feito".

J. M. barrie e os rapazes

J. M. Barrie cresceu rodeado de pobreza e mortalidade infantil, e sofreu a perda do irmão mais velho, num acidente de patinagem, de que nunca recuperou completamente. A mãe estava tão deprimida que Barrie usava a roupa do irmão para acalmá-la. O relacionamento entre mãe e filho rondava o obsessivo. Quando a mãe morreu, Barrie escreveu um livro sobre ela, "Margaret Ogilvy". Foi outra tentativa de resgatar o passado, o tempo de jogos e palhaçadas sem fim. "O horror da minha infância foi saber que chegaria uma altura em que tinha que me deixar de jogos, e como deveria eu fazer isso não sabia; senti que tinha que continuar a brincar em segredo", escreveu.

O homem que criou a fantasia máxima sobre o rapaz que não queria crescer, tornou-se em adulto um inadaptado. Aos 17 anos, não chegava a medir 1m50. Parou de crescer. Não precisou de começar a fazer a barba. As raparigas ignoravam-no, tornou-se introvertido. Era um solitário, propenso a longos silêncios.

Em 1894 casou-se com a actriz Mary Anstell e dois dias antes do casamento escreveu numa agenda: "o nosso amor não me trouxe nada, apenas infortúnio." Depois do casal ter passado a lua-de-mel na Suíça, Mary disse a um amigo que a experiência tinha sido um choque. O casamento acabou em divórcio quinze anos depois, como resultado do adultério de Mary, e desde então surgiram rumores de que Barrie era impotente.

"À Procura da Terra do Nunca" conta a história de Barrie como escritor de sucesso, aos 44 anos, e como ele se inspirou, para escrever "Peter Pan", numa família de quatro miúdos e a mãe deles, Sylvia Llewelyn Davies (Kate Winslet), uma viúva por quem Barrie se apaixonou. O que ameaçou destruir o encantamento de Barrie foram os rumores sobre o seu interesse pelos rapazes. "Basicamente, tudo se resumiu ao diz-que-disse", segundo Depp. "Considerando o que Barrie deu ao mundo, ele merecia mais do que isso".

Saber se o relacionamento com Llewelyn Davies era de natureza sexual é questão controversa. A actriz que interpreta a personagem, Kate Winslet, acredita que Barrie queria casar com ela - comprara-lhe um anel de noivado e tudo, mas Sylvia morreu antes que Barrie lhe desse a prenda. O realizador de "À Procura da Terra do Nunca", Marc Forster, não concorda. "Para muitas pessoas - a filha do rapaz mais novo do filme, historiadores... -, Barrie era de facto assexuado. Não gostava que lhe tocassem e não gostava de tocar noutras pessoas. A sua vida depois da morte de Sylvia voltou a ser sombria, tal como antes. O tempo mais feliz da sua vida, o mais inocente, foi quando criou 'Peter Pan'. Foi um período em que desabrochou, embora no íntimo se sentisse sempre melancólico."

O uso de um fato de três peças fez Depp entrar na personagem. "Barrie não era um animal social. As pessoas com quem ele se sentia à vontade contavam-se pelos dedos, por isso fatos e colarinhos com goma faziam parte da sua natureza rígida. Era um sujeito esquivo nessas situações. Só com as crianças é que se sentia ao mesmo nível."

O aperfeiçoamento do sotaque escocês foi o maior desafio, mesmo que o actor tivesse um "treinador de diálogos" por perto. "Deixe-me dizer que não foi fácil. É um sotaque muito musical mas o meu ouvido não conseguia registá-lo - e tenho um ouvido muito bom desde que recebi lições de música. Não foi coisa que conseguisse de imediato."

Embora hoje pareça inacreditável, o facto de Depp estar envolvido neste projecto não ajudou especialmente a que "À Procura da Terra do Nunca" avançasse. O filme foi rodado em 2002, antes das aventuras do pirata das caraíbas que deu a atenção do "mainstream" a um actor de percurso alternativo. Os direitos de "Peter Pan" pertenciam aos Revolution Studios, que impuseram a "À Procura da Terra do Nunca" um prazo de noventa dias, depois da estreia do seu próprio projecto, "Peter Pan", antes de poder ser lançado no mercado. A chegada do filme de Forster acabou então por ser atrasada um ano.

E ninguém pode imaginar hoje como Forster (o realizador de "Monster's Ball") lutou para que Depp fizesse parte do elenco. Conta o realizador suíço: "As pessoas disseram-me que ele não era suficientemente comercial e eu disse que isso não importava, porque adoro o seu trabalho. E de repente surgiu 'O Pirata das Caraíbas' e começaram todos a dizer, 'oh, meu Deus, tens uma sorte!'. O orçamento de 20 milhões de dólares - foi quanto este filme custou - é provavelmente o preço que Johnny cobra agora pelo seu trabalho. Mas mesmo naquela altura ele baixou o 'cachet' para o filme".

Depp não recebeu nenhum Óscar pelo seu papel de pirata que dava ares de Keith Richards, mas o seu nome volta a estar na baila para a edição deste ano. A ingenuidade que incorpora ao fazer de J. M. Barrie - para não falar do imaculado sotaque escocês e da conduta abotoada - é uma experiência emocionalmente fascinante.

"Johnny tem um incrível sentido de criatividade quando trabalhamos com ele", continua Forster. "Recebe as nossas ideias e leva-as mais longe. É uma troca brilhante. Pequenas coisas... aquela cena, na estreia da peça, quando Barrie está junto da cortina do teatro a olhar para o público, com uma cana com um espelho de forma a ver os espectadores... foi uma ideia dele. Está sempre a movimentar-se de um lado para outro a perguntar 'o que achas?'. É um actor especial, é um homem especial."

A abordagem lúdica de Depp ao papel fez com que os seus jovens colegas se afeiçoassem a ele. Passavam imenso tempo à volta dele no "trailer", e por isso a camaradagem que se sente no filme foi genuína. Muitas lágrimas foram derramadas quando as filmagens acabaram, mas graças a Winslet e Depp, Freddie Highmore, o rapaz que faz de filho dela - Peter, no filme - está ao lado de Depp em "Charlie and the Chocolate Factory".

Johnny, ex-mau rapaz

Johnny Depp, que em tempos desprezava a fama, está grato pelo seu novo estatuto de estrela - e pelos cheques - que conseguiu depois de "O Pirata das Caraíbas". Claro, tem filhos para criar e que começam a estudar, mas está aberta também a possibilidade de fazer tudo o que quiser fazer.

Estará, por exemplo, desejoso de voltar ao pirata Jack Sparrow? "Yeah, muito mesmo", ri-se. Até conseguiu recrutar Keith Richards para fazer de seu pai na sequela. "Passei bastante tempo com o Keith ao longo dos anos e tive a sorte de vir a conhecê-lo bem e à sua família. É um grande homem, um herói, um bom rapaz, um génio, é simplesmente Keith Richards", diz, e fica quase sem fôlego. "Yeah, por isso é óptimo que tenha aceite trabalhar connosco".

Mas o seu herói é Marlon Brando, que com ele trabalhou em "Don Juan DeMarco". Desenvolveu-se tal amizade entre os dois, que Brando aceitou entrar no pequeno filme com que Depp se estreou há uns anos na realização, "The Brave". "Foi devastador, uma grande surpresa", diz Depp sobre a morte de Brando. "Foi uma perda. Penso muito nele. Sinto a falta dele todos os dias."

Claro que teve a família para consolá-lo, e agora a maré está favorável à sua carreira e à sua vida privada. Conheceu Vanessa Paradis quando filmou "A Nona Porta", de Polanski, em Paris, não muito tempo depois de ter acabado o namoro com a modelo Kate Moss. Três meses mais tarde, Paradis engravidou e Lily-Rose nasceu. Depp sentiu-se "mais feliz do que alguma vez podia ter imaginado". O casal divide o seu tempo entre França e Los Angeles - dependendo do trabalho. Depp, por exemplo, passou em Londres a maior parte deste ano. "Há menos correria e pressão na Europa, longe do sistema dos estúdios", admite.

Embora tivesse sido casado, por um curto período de tempo, aos 20 anos, desde então nunca mais celebrou outra união - apesar de ter tido relacionamentos com Moss, Winona Ryder, Jennifer Grey e Sherilyn Fenn. O Y diz-lhe que leu numa revista que se a actual companheira, Vanessa Paradis, lhe pedisse que se casasse com ela, ele diria que sim.

"Com certeza", responde. "Se ela quiser, porque não? O problema é que Vanessa tem um excelente apelido e odiava dar cabo dele. Paradis-Depp?", lança ao ar, fazendo uma pausa para ouvir a entoação. "Não me parece que fique bem".

Portanto, a sua imagem de mau rapaz, que adquiriu, por exemplo, quando vandalizou um quarto do Mark Hotel, em Nova Iorque, desapareceu... "Nunca tive fama de mau rapaz. Quer dizer: pelo menos não foi coisa que eu andasse a fazer por aí todos os dias, sabe. Foi uma etiqueta que me colocaram, mas nunca me vi dessa maneira - nem a minha mãe me viu assim [tem uma tatuagem em sua honra, e foram sempre muito próximos]. Agora estou a gozar um bom período da minha vida."

Apesar do seu actual poder em Hollywood - e de ter uma família para sustentar -, insiste que não está nisto pelo dinheiro. O facto de ter feito, de seguida, três "filmes de fantasia" "foi coincidência. Não cheguei àquele ponto na carreira em que tenho de me vender para fazer uma pipa de massa. Poderá acontecer, nunca se sabe."

Durante a rodagem de "O Pirata das Caraíbas", Johnny Depp não fazia ideia do sucesso estrondoso que o filme iria ter. "Não me senti diferente de quando estava a fazer os pequenos filmes do costume, a não ser o facto de estarmos a filmar a bordo de enormes barcos. E depois, quando, a três quartos do fim das filmagens, me mostraram um bocado de filme... fiquei sem palavras. Na estreia de 'O Pirata...' foi como se me estivessem a puxar para uma nave espacial. Nunca tinha visto nada assim. Fiquei igualmente emocionado com o sucesso de bilheteira. É algo a que não estou habituado e fiquei comovido pelas pessoas terem gostado tanto. Suponho que devo gozar a maré alta enquanto posso."

Pela primeira vez na vida, parece capaz de competir com o jogo que se joga em Hollywood. "Estou mais tranquilo desde que conheço a Vanessa, ganhei uma distância confortável para poder ter uma perspectiva sobre as coisas. Antes sentia-me um mero ingrediente a flutuar numa panela de guisado e não encontrava o meu lugar. Quando se vive em Hollywood estamos constantemente a jogar um jogo, e somos susceptíveis às pressões em termos de sucesso de carreira. Não podia suportar isso, porque não tenho interesse nenhum nisso. Quero dizer: sempre quis fazer um filme que se saísse bem mas não à custa de compromissos criativos. Por isso acho que a Vanessa e os miúdos me fizeram criar raízes de forma que posso ver as coisas com uma certa distância. É uma boa sensação".

Dá uma gargalhada e repete: "É mesmo uma boa sensação".

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