A estrela misteriosa

Laurence Ferreira Barbosa, a cineasta de "As Pessoas Normais Não Têm Nada de Especial" (que apesar dos posteriores "Odeio o Amor" e "A Vida Moderna" continua a ser o seu filme mais conhecido), adapta aqui a história homónima de Donald E. Westlake, originalmente publicada em 1977. Registe-se o que essa adaptação tem de surpreendente: Ferreira Barbosa até aqui filmou a partir de argumentos originais de sua autoria (mesmo que partilhada), e a primeira vez que adapta uma obra escrita escolhe um autor americano cujo universo narrativo não podia, a priori, estar mais longe daquilo que costuma ser o universo dos seus filmes.

Mas parece interessar-lhe, sobretudo, uma situação. Esta: um marinheiro francês (de origem grega) chamado Ordo, um tipo mais ou menos "misfit" com uma longa história de "inadaptações", descobre por acaso que a mais recente coqueluche do star system do cinema francês é nem mais nem menos do que a mulher com quem foi brevemente casado há quase vinte anos, era ela uma rapariga com dezasseis anos. É pelo menos o que diz uma revista, que até publica uma fotografia do casamento deles. Mas ele não reconhece a sua ex-mulher, que tem um nome diferente e, acha ele, um rosto diferente. Intrigado, tira uns dias de licença e vai à procura dela.

O fundo policial, muito vago e muito diluído, tem a ver com o mistério da identidade de Louise Sandoli (assim se chama, agora, a mulher). Durante boa parte do filme persiste a dúvida - dúvida de Ordo e, através dele, do espectador - e algumas pistas parecem apontar para uma história complicada, relacionada, no mínimo, com uma usurpação de identidade. As cenas que se seguem ao reencontro parecem sublinhar a estranheza com que Louise aparece aos olhos de Ordo, e é uma estranheza reforçada por o encontro se dar em plena rodagem de um filme; ou seja, com Louise a entrar e a sair constantemente da personagem que interpreta na ocasião, e rodeada de uma fauna de "movie people" mais ou menos caricatural. Aliás, esse aspecto não deixa de ser uma vertente temática de "Ordo", que aproveita para lançar um olhar mais ou menos sibilinamente crítico do "milieu" (é reparar por exemplo na personagem do agente de Louise, personagem de "poltrão" pouco escrupuloso, porventura melhor actor do que todos os melhores actores).

É também - esse aspecto - o que o filme tem de mais anedótico, reduzido a uns quantos "gags de rodagem" e a uma galeria de "tipos" mais ou menos monodimensional (o actor amaneirado, o realizador distante e teimoso, os assistentes mais ou menos desajeitados). O mais conseguido de "Ordo" é o seu lado "fedoresco" (como quem diz: do "Fedora" de Billy Wilder), a sua caracterização "vampírica" do estrelato - como se fosse inevitável, de facto, uma usurpação de identidade, como se uma "estrela" fosse, em si mesma, a construção de uma personagem fictícia onde se perde de vista a "realidade" biográfica, pessoal, seja o que for. Isso, a sugestão de uma personalidade aprisionada dentro de um corpo com uma identidade nova e estranha, exposta como se o processo não pudesse deixar de implicar um crime, ou, pelo menos, uma morte, é o que "Ordo" resolve de maneira mais interessante e mais eficaz (e utilizando muito bem o contracampo permanente de Louise que é o olhar de Ordo, olhar neutro e tenso, olhar de não-reconhecimento). É verdade que não consegue fazer sentir aquele cheiro a flores e a velório que havia em "Fedora", mas isso ninguém consegue.

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