A fera no corpo de uma mulher

Por detrás da sensualidade de Irena Dubrovna (Simone Simon) esconde-se uma maldição ancestral. De presa, a protagonista passa a predadora e está disposta a vingar-se de quem se atravessar no seu caminho. Neste clássico sombrio de Jacques Tourneur, o terror é um conceito ambíguo e tentador.

Aquilo que a câmara não mostra, mas sugere, torna-se sempre no elemento mais intimidante. A regra é antiga e continua a ser usada quando o assunto é "suspense", embora nenhum realizador - com excepção de Alfred Hitchcock - pareça dominá-la melhor do que Jacques Tourneur.

Em "A Pantera/Cat People" (1942), a história de uma mulher que é vítima de uma maldição ancestral, as mutações físicas da protagonista ocorrem quase sempre a partir de elementos sugestivos, seja um ruído disperso ou um jogo de luz. Estes artifícios, consequência também de um período em que os efeitos especiais ainda não permitiam resultados muito convincentes, apelam à imaginação do espectador e tornam o filme um dos mais densos e enigmáticos de sempre.

No período clássico de Hollywood, Jacques Tourneur passou a ser conotado com o melhor cinema negro, embora tivesse experimentado o "western", o filme de espionagem ou a aventura medieval. Porém, em todas as suas obras, o destaque vai para uma técnica sombria, hipnótica, em que uma calma aparente da acção contrasta com um alicerce dramático inconfessável.

Filho do realizador de filmes mudos Maurice Tourneur, o cineasta francês de "A Pantera" reconheceu ter aprendido tudo com o pai, deslocando-se muito novo para os Estados Unidos onde começou a trabalhar como assistente de produção e colaborador de uma equipa de argumentistas. Em 1942, o estúdio RKO queria contrariar o predomínio da Universal em matéria de contos fantásticos, como "Frankenstein" ou "A Múmia", e a fórmula encontrada foi a de uma história que combinasse o sobrenatural com a sensualidade feminina.

O filme "A Pantera", escrito por DeWitt Bodeen, foi rodado com poucos meios e em menos de um mês, mas Tourneur revelou-se um mestre a criar uma grande história a partir de um orçamento reduzido. O sucesso foi imediato (acabou por render quatro milhões de dólares nas bilheteiras) e os maiores elogios da crítica foram para o estilo flutuante do futuro realizador de "O Arrependido". Nunca foi considerado o maior dos cineastas, mas Jacques Tourneur sempre fez questão de se colocar à margem da indústria de Hollywood. Esta sua postura parece reflectida nos seus trabalhos e nas subtilezas que utilizava para recriar o "film noir".

Em "Jacques Tourneur: The Cinema of Nightfall", o especialista Chris Fujiwara salienta que uma das características principais do estilo do realizador francês é a sua capacidade de começar uma acção pelo meio, com as personagens a fazerem referência a acontecimentos passados. "A Pantera" começa precisamente com uma citação atribuída a um dos protagonistas da história, o psiquiatra Louis Judd (Tom Conway): "Tal como o nevoeiro continua a cobrir os vales, também o pecado antigo persiste nos locais baixos, nas depressões da consciência do mundo."

A nota introdutória remete para a lenda ancestral que atormenta Irena Dubrovna (Simone Simon), uma desenhadora de moda sérvia a residir em Nova Iorque. A jovem, que esconde por detrás do charme sofisticado uma profunda insegurança, passa as tardes no Jardim Zoológico a contemplar a jaula das panteras. É inclusivamente neste espaço que conhece Oliver Reed (Kent Smith), um arquitecto que se deixa encantar pela sua insinuante presença.

"Gosto da escuridão. É acolhedora", revela Irena no primeiro encontro romântico. Os dois casam-se mas o arquitecto cedo se apercebe que a mulher conserva um segredo que a impede de se entregar às emoções: segundo um mito medieval, as "mulheres-pantera", descendentes das bruxas executadas pelo Rei João da Sérvia, transformam-se no mais perigoso dos felinos após uma contrariedade. E basta um simples beijo para se assistir à mais tenebrosa das mutações.

Para aliviar aquilo que a atormenta, Irena acaba por consultar o psiquiatra Louis Judd, que subvaloriza o estranho mito e prefere concentrar-se nos gestos sedutores da paciente. Contudo, não vai demorar muito até a estranha mulher se render à maldição felina que, em momentos de tensão, toma conta do seu corpo. De presa social, Irena transforma-se em predadora e o seu primeiro alvo vai ser Alice Moore (Jane Randolph), a colega de trabalho do seu marido que insiste em acompanhá-lo para todo o lado.

Uma das cenas mais célebres de "A Pantera" decorre numa piscina, mas Jacques Tourneur espelha o terror em quase todas as sequências finais. Mais uma vez, o que sobressai é o seu talento para jogar com os efeitos de iluminação, explorando a sombra como território de dúvida. Apesar disso, a pantera vai aparecer no ecrã, expondo definitivamente a duplicidade perturbante de Irena Dubrovna.

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