Felliniano

Com toda a probabilidade, este é o mais marcante filme em toda a obra de Federico Fellini. "Marcante" em sentido literal: algo que deixa marca. E as marcas de "Oito e Meio" fizeram-se sentir a vários níveis. No imaginário cinéfilo, fazendo com que frequentemente se escreva ou se leia que o "filme x" é o "oito e meio" do cineasta "y"; na fixação de um "protótipo" de filme reflexivo, em que a personalidade do realizador, as suas angústias e euforias criativas, são o centro absoluto (e de que Woody Allen é apenas o seguidor mais visível); marcante, enfim, no curso da obra de Fellini, que com poucas ou nenhumas hesitações seguiria até ao fim o rumo aberto por este filme.

Não nos imaginamos na pele de um espectador contemporâneo que vá agora ver "Oito e Meio" pela primeira vez. Deve ser uma experiência fascinante. Mais fascinante, só se fosse possível transportarmo-nos para 1963 e ir ver "Oito e Meio", que agora repõe em cópia nova, conhecendo apenas a obra anterior de Fellini. O efeito que o filme provocou nos seus contemporâneos pode ser mais ou menos anedoticamente exemplificado pelo facto de "Oito e Meio" ter conquistado quer o Óscar de Hollywood para melhor filme estrangeiro quer o grande prémio do Festival de cinema de Moscovo - em 1963, agradar assim a gregos e troianos não era tarefa fácil, e isso quererá dizer qualquer coisa.

É impossível descrever "Oito e Meio". Digamos para simplificar que se trata de um filme construído sobre um impasse: o impasse de um realizador (Marcello Mastroianni, "alter ego" preferido de Fellini) que pura e simplesmente tem tudo preparado para começar a rodagem de um filme mas não tem ideia nenhuma (ou pelo contrário, tem ideias demasiadas e todas sobrepostas, o que vai dar ao mesmo) sobre que filme vai rodar - é por isso que o filme, em rigor, não tem título, chamando-se "Oito e Meio" porque até então Fellini rodara sete filmes e um "meio-filme", uma curta-metragem. Impasse criativo, crise pessoal: "Oito e Meio" constrói-se como um longo "stream of (in)consciousness", onde os problemas profissionais práticos (o produtor que pergunta repetidamente: "mas que história vais filmar?") alternam com os problemas do foro íntimo (o realizador tem uma mulher e tem uma amante, e ambas começam a perder a paciência para as suas indecisões), e com as investidas da sua biografia - que volta como uma auto-terapia espontânea, entre o pesadelo psicanalítico e a hipótese da catarse, e onde Fellini se projecta mais explicitação (como sempre, a infância e a adolescência em Rimini).

É este caldeirão, à beira da disformidade - como disformes são as recordações e as projecções mentais de Fellini - que alimenta "Oito e Meio" de uma ponta a outra, numa experiência hipnótica onde todas as fronteiras espaciais e limites temporais se tornam irreconhecíveis (quanto tempo passou entre o primeiro e o último planos do filme?). Esta contracção temporal, que é sobretudo uma contracção da linearidade e do tempo narrativo (na altura, "Oito e Meio" foi muito comparado com o quase contemporâneo "Último Ano em Marienbad" de Alain Resnais) é o terreno, aqui ainda virgem, que Fellini praticamente não deixará nunca mais de percorrer: em "Oito e Meio", o "realismo" é definitivamente expulso, assim como a sua associada, a "organização clássica da narrativa".

E esta não é questão de somenos, se olharmos ao contexto. Fellini viveu, de facto, uma crise criativa a seguir a "La Dolce Vita", em 1960. Sentia que tinha chegado ao limite de um modelo - um modelo que, por muitas que fossem as contorções a que Fellini o submetera nesse filme (e por muitos que fossem os anúncios disseminados praticamente desde o início da sua obra), persistia ainda ancorado nas expectativas "neo-realistas" que enformaram o cinema italiano do pós-guerra. O "neo-realismo", no cinema italiano dos anos 40 e 50, mais do que um modelo ou um estilo, era quase uma ideologia, devidamente policiada por uma crítica politicamente "engagée". Os desvios - aconteceu com Rossellini, com Visconti - eram normalmente mal recebidos, uma "traição". Fellini, que já coleccionara a sua quota-parte de acusações de heterodoxia, partiu definitivamente a louça toda com "Oito e Meio". Historicamente, esta é a mais provável certidão de óbito do neo-realismo, quase dez anos depois do golpe mortal desferido pelo "Senso" de Visconti. E se "Oito e Meio", como muitas vezes se diz, é o "menos italiano" (e "mais nórdico") dos filmes de Federico Fellini, este elogio do artifício e da subjectividade provavelmente não podia ter nascido senão da mente de um italiano espartilhado pelas obrigações do realismo.

Fellini voltaria inúmeras vezes ao tema do próprio cinema, filmando em registos semi-diarísticos ("Block-Notes di un Regista", curiosíssimo ensaio sobre um projecto de filme abortado) ou semi-fantasiosos (algo como a "Intervista", já nos anos 80). Em certo sentido, é no cinema que se unifica a mescla heteróclita que compõe "Oito e Meio" e para a qual se inventou um adjectivo, "felliniano". É o que aqui acontece, no fim, quando debaixo dos holofotes que iluminam aquela mistura de pista de circo e cenário de ficção científica, Marcello Mastroianni, o alter ego, se encontra. Fellini também: doravante será Federico Fellini, cineasta felliniano.

Sugerir correcção
Comentar