A ideologia do Natal

Não há Natal sem filmes de Natal, sempre foi assim. O que não quer dizer que os maiores filmes de Natal sejam expressamente "filmes de Natal" (é lembrar o "It's a Wonderful Life"/ "Do Céu Caiu uma Estrela", de Capra, por exemplo). Mas adiante, aqui está o filme de Natal para acabar com todos os filmes de Natal, o filme de Natal que quer ser "o" filme de Natal: "Polar Express", última "proeza" de Robert Zemeckis e do seu "sidekick" Tom Hanks.

Zemeckis gosta de proezas tecnológicas, e gosta de contos de fadas. Uma coisa, normalmente, completa a outra, a tecnologia vem em socorro da "magia". Como "Forest Gump", há dez anos, com Tom Hanks "plantado" em imagens de arquivo, também "Polar Express" traz a auréola da novidade. Novidade, valha a verdade, relativa: o procedimento empregue, "motion capture", é há anos utilizado para reproduzir os movimentos de desportistas em simulações de computador, para além de outras utilizações de carácter mais científico. Aqui, serve para pôr Tom Hanks a representar "em abstracto", e depois cobri-lo com uma capa de animação suficiente para lhe alterar a morfologia e multiplicá-lo por seis personagens diferentes - sim, porque "Tom Hanks x 5" é a outra proeza do pacote "Polar Express" (ainda assim, fica a três personagens do record de Alec Guinness).

Maravilhas da tecnologia à parte, que é "Polar Express"? Um filme de animação, relativamente banal, não desagradável de todo, supreendente aqui e acolá, tremendamente ortodoxo na forma e na substância. É, aliás, um paradoxo curioso que todo o arsenal "high tech" posto na sua concepção seja dificilmente visível e nada ostensivo - um olhar desprevenido não perderia dois segundos a espantar-se com a multiplicação das expressões faciais de Tom Hanks e entusiasmar-se-ia muito mais com sequências como, por exemplo, a do voo do bilhete no bico da águia (que é capaz de ser o momento visualmente mais conseguido de todo o filme). A história, que grita a plenos pulmões a sua vontade se ser uma "fábula", é a de um miúdo que não acredita no Pai Natal mas que muda de ideias quando, numa noite de Natal, apanha o comboio (o "expresso polar") que o leva directamente ao epicentro do Natal, o Pólo Norte (e é curioso que não haja aqui absolutamente nada que lembre que o Natal é uma festa que tem pelo menos uma origem religiosa). De resto, é a ortodoxia natalícia com todo o folclore associado, carradas de bondade, e muita correcção política (o menino pobre, a menina negra). Não podia ser guiado por outro que não Tom Hanks, "middle class hero", "mr. common man", aquele em quem toda a gente confiaria para trinchar o peru. Se não corrêssemos o risco de sermos mal entendidos, diríamos que em "Polar Express", mais do que "o espírito do Natal", está a "ideologia do Natal". É que o "espírito" tem caminhos mais imprevistos - esperem lá pelo "Anti-Pai Natal" de Terry Zwigoff, "Bad Santa", a estrear em breve.

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